A análise da estética e da existência humana levou Friedrich Nietzsche, à luz dos aforismas heraclitianos, refletir a tensão entre Apolo e Dioniso, evidenciada nas expressões artísticas, que retrata polaridades como vontade de combate e embriaguês, Logos e Eros, simetria e assimetria, beleza e feiura, amor e pornografia, presentes de forma abundante, tanto no âmago da nossa atual sociedade, quanto na política. Sua crítica dirigia-se contra a dualidade, as posições unilaterais e binárias, onde um lado exclui e se antagoniza com o outro, sugerindo a integração destes deuses para que possamos pensar fora da dualidade, de forma integrativa, transpessoal e simbólica.
Na perspectiva da mitologia greco-romana, os humanos não são criaturas do Olimpo e nem do Hades, do Céu ou do Inferno, porque estamos no meio, onde o maior desafio, proposto pelo psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, é o processo de individuação, que equivale a integração das polaridades, por meio da capacidade simbólica e da prática da alteridade, e não a de ficarmos polarizados ainda mais. O investimento é para integrarmos nossos aspectos supraterrestres com os infraterrestres na dimensão terrestre.
As mitologias são os registros das expressões da alma humana diante do desafio evolutivo e, por isso, possuem várias vertentes, mas todas acabam revelando aspectos da psique humana. Neste artigo partirei do recorte da tradição órfica, ao deixar evidente que, em nosso íntimo, coexistem o Bem e o Mal. Porque, segundo os órficos – século VI a.C., a origem da humanidade acontece após o assassinato do menino Dioniso Zagreu, quando um grupo de Titãs, revoltados com os deuses olímpicos e incentivados pela deusa Hera, que desejava se livrar do filho bastardo de seu marido, mataram e comeram o jovem deus, preservando apenas seu coração. Dioniso Zagreu era filho de Zeus com Perséfone, esposa de Hades e rainha do mundo dos mortos. Zeus também é um titã, que destronou Cronos, seu pai, com a ajuda de seus irmãos Hades e Poseidon, expulsando os demais titãs. Zeus, com seus raios, vinga-se da morte de seu filho, fulminado todos os titãs, que viraram cinzas – terra ou humus. O coração de Dioniso Zagreu foi recuperado e Zeus consegue “transferi-lo” para Semele, sua nova amante mortal, dando origem ao segundo Dioniso, também chamado de Iaco ou Baco, mas isso é uma outra narrativa e não cabe aqui.
irmão de Atlas, Epimeteu e Menoécio, e progenitor de Deucalião, amigo de Zeus e que o ajudou a destronar seu pai Cronos, que criou a raça humana, utilizando-se das cinzas dos titãs fulminados por Zeus, que tinham acabado de comer Dioniso Zagreu, da água para moldar esse humus e depois do fogo e do ar para animar e dar consciência a raça humana. Apesar de sua imortalidade, ele se dedicou para possibilitar a evolução do homem, sua criação, concedendo-nos o poder de pensar e raciocinar. Ele também nos transmitiu os mais variados ofícios e aptidões, deixando Zeus enciumado e colérico, fazendo Prometeu sofrer terríveis consequências por ajudar a humanidade e até de ter roubado o fogo, ou a luz de Zeus, para possibilitar a ampliação da consciência da humanidade. Desta narrativa é que surge o episódio trágico da caixa de Pandora, onde as pragas, com exceção da esperança, foram soltas para atormentar a raça humana, e outras peripécias de Prometeu e Epimeteu, seu irmão que, contrário a ele, só medita depois de fazer, mas isso também não é relevante para este texto.
Deste mitologema começamos a compreender a dupla natureza da raça humana: a dionisíaca e a titânica, onde de forma ambivalente somos a resultante de forças antagônicas entre luz e sombra, bem e mal, divino e profano, espiritual e material, instintivo e arquetípico. Desta tensão, graças a diferenciação da consciência, e do surgimento do Ego, como seu representante, podemos exercer o livre arbítrio para conquistarmos a superação da dualidade, mas isso não é tarefa fácil!
Nesta perspectiva que faço a análise e ampliação das diversas representações arquetípicas dos deuses e heróis da mitologia, divergindo um pouco do recorte nietzschiano que polarizou Apolo e o segundo Dionísio, alinhando-me mais com a visão junguiana, que nos apresenta a tensão que existe entre os espectros infravermelho e ultravioleta da luz, representando simbólica e reciprocamente os instintos, que para mim é a dimensão titânica em nós, e os arquétipos que, nesta análise, representa Dioníso Zagreu, a vida anímica, como resultado da união de Zeus e Perséfone, do imanente com o transcendente, a Luz com as Trevas, de Eros com Thanatos.
Quando ficamos unilateralizados e identificados em um dos lados da imagem simbólica, perdemos a possibilidade criativa e transcendente de superarmos e integrarmos corpo e alma, matéria e espírito, soma e psique, instinto e arquétipos. Ao permanecermos fixados em um dos polos de qualquer representação mítica, ficamos intoxicados e, inevitavelmente, cometeremos a hybris, que é a desmedida, que nos faz cair em desgraça, porque deixamos de lidar com a representação da imagem arquetípica de forma simbólica, que é integrativa e transpessoal, devido nossa identificação diabólica, a que nega o outro polo, literalizando e unilateralizando a potencialidade arquetípica, muitas vezes reduzida a códigos de condutas, amplamente usados e abusados pelas religiões e pelos governos autoritaristas, registrado historicamente na cumplicidade de Estado e Religião, com o mesmo propósito de tirar a liberdade, a autonomia e a soberania dos indivíduos e, consequentemente, da sociedade, que é a polis, para se perpetuarem no poder, interditando a igualdade e a fraternidade, fomentando a competição, o medo e destruindo qualquer expressão de amor.
Ao tentarmos compreender o momento geopolítico que estamos atravessando, com excesso de polaridade, maniqueísmo, intolerância, literalidade, medo e desejo de poder imperando, fica claro que o lado titânico está prevalecendo sobre o lado dionisíaco. Óbvio que essa situação não pode perdurar, porque a natureza é pendular e, de um modo ou de outro, com maior ou menor crise e tragédia, o fenômeno da enantiodromia surgirá.
Graças ao calor do fogo, os homens tornarem-se sociáveis, e isto nos remete às contribuições da deusa Héstia, figura mitológica que cuida da lareira e, consequentemente, do lar. Graças a Héstia, uma deusa vestal, a humanidade aprendeu a ficar reunida em volta do fogo e no aconchego e proteção do lar. Desta prática é que surgiu a linguagem, a capacidade de partilhar emoções e sonhos, planejar, conviver e até amar fraternalmente uns aos outros. Como toda expressão arquetípica é bipolar, o lado sombrio e obscuro desta deusa produz medo e exclusão do diferente, tornando-o em desigual, transformando-o em inimigo que precisa ser destruído e eliminado! Por isso, neste momento titânico que está contaminando a humanidade contemporânea, esta representação arquetípica está desmedida, justificando as pessoas estarem extremamente intolerantes com os diferentes, apoiarem a construção de muros, com atitudes xenofóbicas e apego exagerado ao território.
Com a hipertrofia unilateralizada de Héstia, Ares, o deus da guerra, também fica acionado e em alerta, pronto para atuar, com sua armadura e seus apetrechos siderais, ativando seu desejo de sangue, totalmente distante de Afrodite, que lhe poderia dar gentileza e respeito pelo outro.
Neste mesmo cenário, também de forma desmedida, está o deus Hermes, aquele que poderia nos ajudar a transitar entre os mundos material e espiritual, de Bios e Zoé, nos dando mensagens, ideias, caminhos, capacidade comercial, para nossa evolução e transcendência, porque Hermes é um psicopompo, aquele que transporta a alma, nos ensina a arte da hermenêutica e, na metáfora alquímica, contribui para que possamos transformar nossos aspectos plúmbicos em áureos. Porém, como tudo está dicotomizado e unilateralizado, o lado sombrio de Hermes acabou produzindo o excesso de informações rasas e fugazes, as fake News com seus memes, o neoliberalismo e o globalismo, onde o que mais importa é o ganho material, o acúmulo e a riqueza.
Na realidade, todas as figuras mitológicas estão ocupando o cenário contemporâneo, e como são negadas pela consciência da maioria, como disse Jung no passado, elas acabam virando doenças e fazem as maiores estripulias nos consultórios dos médicos, principalmente quando elas se manifestam de forma unilateral e literal, como está acontecendo neste momento titânico, devido ao medo do término do dinamismo patriarcal e do anúncio da crise que essa mudança de paradigma, para o dinamismo da alteridade, está causando. Resta-nos apenas fé e resiliência para nos manter íntegros, sem sucumbir na ilusão que o partidarismo e a unilateralidade produzem, por darem o falso sentimento de pertencimento, segurança territorial e conhecimento.
Waldemar Magaldi Filho, Psicólogo, analista junguiano, mestre e doutor em ciências da religião, especialista em psicologia analítica, psicossomática, arteterapia e homeopatia, professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato-sensu, que titulam e formam especialistas em Psicologia Junguiana, Psicossomática e Arteterapia do IJEP – Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa – em SP; RJ e BSB. Autor do livro: “Dinheiro, saúde e sagrado” – Ed. Eleva Cultural. www.elevacultural.com e Prof. do IJBA (Instituto Junguiano da Bahia)