Há mais de meio século o homem ambiciona criar programas de computador que reproduzam a consciência humana. O matemático inglês Alan Turing, a quem é creditado o título de “pai da computação”, propôs em 1950 um teste para distingui-la de uma hipotética inteligência artificial: perguntas seriam feitas para ambos sem que o entrevistador pudesse ver quem respondia. Se não houvesse como distinguir o interlocutor humano do artificial, a máquina havia passado no teste.
Na série de TV americana Westworld (2017), esta visão torna-se realidade. Nela, um parque de diversões adulto com a temática do faroeste abriga robôs com aparência humana e consciência artificial, à primeira vista indistinguíveis dos seres humanos. No entanto, seu comportamento é restringido por uma programação que limita sua personalidade a um determinado papel, chamado de “circuito narrativo” (narrative loop): a filha do fazendeiro que é ameaçada por bandoleiros e deve ser salva por um visitante do parque, a prostituta, o fora-da-lei que tenta assaltar o cofre da taberna e precisa ser impedido etc. A repetição diária e inconsciente das ações e diálogos num mesmo enredo é o único elemento que denuncia a artificialidade da consciência robótica.
Ao tentar criar a consciência artificial, o homem acabou por se deparar com o fato de que sequer compreende como funciona sua própria consciência. Em Ex Machina (filme de 2015), um cientista da computação que tenta criar uma inteligência artificial chega à seguinte conclusão: enquanto a consciência humana é aparentemente livre e imprevisível, a máquina só pode funcionar após receber um sistema operacional, um conjunto detalhado de regras que determina todos os aspectos de sua interação com o mundo. A previsibilidade denuncia a programação, a ausência de livre arbítrio ou vontade própria. É impossível programar o acaso, já que o aleatório, por definição, foge a qualquer regra – e a computação é baseada inteiramente em regras (se você acreditava que o modo aleatório do seu player de música era aleatório, pense outra vez). Contemplando um quadro do pintor expressionista abstrato Jackson Pollock, uma personagem do filme afirma que a beleza de suas obras estava na imprevisibilidade das linhas de tinta conseguidas pelo braço do artista. Esperar o espontâneo de uma máquina seria esperar que algo novo brote nele e passe a tomar decisões inexistentes em seu programa original. Não é à toa que quando algum eletrônico se comporta de forma imprevista diz-se que ele “ganhou vida”.
Mas seria correto afirmar que a personalidade humana é imprevisível? Não teríamos nós “programas” que determinam nossas ações? Assim como nenhum computador ou smartphone é vendido sem um sistema operacional instalado – sem o qual ele sequer poderia ligar –, o ser humano nasce já com “programas” básicos, desde aqueles que permitem que seus órgãos funcionem, seu pulmão respire e o coração bata, até alguns mais complexos, que determinem que ele saiba mamar assim que nasce, sorrir quando sorriem para ele, tente andar quando as suas pernas estão prontas. Muitas pessoas relatam mudanças automáticas, instintivas, em seu comportamento assim que tornam-se pais. Homens e mulheres ordinários tornam-se capazes de atos heróicos por seus filhos. Assim como homens comumente tornam-se mais responsáveis assim que tornam-se pais, é comum ouvir de mulheres que “ser mãe é ter medo de morrer todos os dias e deixar os filhos sozinhos”.
Jung chamou estes programas “pré-instalados” na psique humana de arquétipos. Assim, a existência dos arquétipos parentais explica como homens e mulheres de todo o mundo mudem o comportamento de forma semelhante logo que têm filhos, do mesmo modo que uma ave geralmente dócil fique agressiva na fase de choco, enfrentando animais bem maiores que entrem no território onde estão suas crias recém-nascidas. Os arquétipos parentais reorientam as prioridades dos pais de modo que os filhos passam a ser o sentido maior das suas vidas – e, de certo modo, o são: os filhos são a perpetuação de sua informação genética no planeta, uma forma peculiar de imortalidade. Isso explica também a dificuldade que certos pais têm em abrir mão do controle sobre a vida dos filhos: eles a sentem como continuação da sua própria, na qual investiram todas as suas energias e expectativas.
Outros arquétipos estão por trás das neuroses, em estruturas psíquicas que Jung chamou de complexos. No consultório da psicoterapia presenciamos diariamente pessoas que são vítimas de uma espécie de circuito narrativo. Não conseguem escapar da repetição comportamentos disfuncionais, compulsivos, obsessivos; entram e saem subsequentemente de relacionamentos onde os mesmos papéis são representados, mudando apenas os atores. Frases comuns são: “ele(a) é tudo para mim”; “eu sou nada sem ele(a)”. “Sou o salvador, o outro, o impotente que precisa ser salvo.” “Sou a vítima, o outro, o agressor”. “Começa tudo bem, logo enjôo da pessoa, perco o interesse a passo a trair.” “Não consigo ter amigos.” “Não fico em nenhum emprego, sempre brigo com as pessoas.” “Em todo lugar, sempre me perseguem”…
Famosos no cinema e nas séries de TV, os serial killers são caricaturas humanas incapazes de fugir de um padrão bastante definido de comportamento criminoso, a agressão sexual em série de mulheres associada à sua morte e/ou mutilação. Mas também há os “assassinos em série” de relacionamentos! Há os que se decepcionam com o outro sucessivas vezes até desistirem de relacionar-se. Há os dependentes químicos, pedófilos etc. Para os adultos que sofrem agressões no contexto de um relacionamento afetivo aparentemente existe a escolha de sair antes que as coisas piorem, mas muitas pessoas estão presas ao personagem passivo da vítima por uma programação que remonta à infância, pois é lá que geralmente viveram pela primeira vez o papel que marcará boa parte de sua vida adulta. É comum que vítimas de abuso infantil se tornem ou abusadores ou vítimas de novas relações abusivas na vida adulta.
A repetição de um papel mata o que é uma característica indispensável da vida: o novo, o espontâneo, o imprevisível. Paralisa o desenvolvimento natural da personalidade. Sufoca o indivíduo que, esmagado pelo “destino”, sofre pela falta de livre-arbítrio. Os exemplos acima são de casos agudos, neuroses que levam alguém à terapia ou até psicoses. Mas cada um de nós, sejamos considerados normais ou não, é presa de algum circuito narrativo. Todos conhecem alguém que tem um medo irracional e intenso de animais inofensivos como baratas, sapos, etc. As fobias (o que também inclui a homofobia, a xenofobia, entre outras) são produtos de um sistema psíquico de defesa (ou um “programa”) que entra em ação para proteger de uma ameaça real o nosso ser infantil, mas que continuam atuando em nossa psique muito após a época em que éramos vulneráveis àquela ameaça. A criança que exerce o bullying na escola foi antes traumatizada por um adulto preconceituoso: ao ser repreendida violentamente por se comportar de determinada maneira, a criança passa a reproduzir o comportamento repressor aprendido no ambiente familiar através do bullying e se tornará um adulto intolerante, exatamente como fora um ou ambos os pais.
Parte da solução para o problema da consciência artificial está no que se chama hoje de “aprendizado de máquina”. Não é possível criar a consciência artificial do zero, mas é possível criar um código que permita o aprendizado, isto é, a incorporação – sem a interferência de um programador – de novas ações a partir da interação com o ambiente. Dessa forma, as chamadas “assistentes virtuais” que estão instaladas nos smartphones se tornam cada vez mais próximas de uma consciência humana à medida em que interagem e aprendem com as pessoas.
Para o ser humano, a resposta já existe há muito tempo na máxima do Oráculo de Delfos: “conhece-te a ti mesmo”. É impossível escapar dos circuitos narrativos que limitam nossas possibilidades sem que nos voltemos para nossa própria história e examinemos uma por uma nossas próprias convicções. O medo do desconhecido desempenha um papel importante para nossa autopreservação, mas também está na raiz da manutenção de ideias e comportamentos obsoletos diante de um mundo que muda rapidamente. Até conseguirmos entender porque tanto tememos o outro, o novo, o diferente; porque continuamos vivendo uma vida sem sentido, repetindo as mesmas decisões que nos oprimem, seremos como os robôs de consciência limitada da ficção científica, escravos de escolhas que não podem ser chamadas de nossas.
Paulo Nunes
Médico graduado pela UFBA em 2005.
Especialista em Psicoterapia Analítica pelo IJBA em 2018.