Toda tentativa de compreender e explicar a natureza psíquica deve ser encarada como um exercício subjetivo, do ponto de vista de quem está nesta empreitada, reconhecendo-o de forma simbólica e metafórica, fugindo das definições e da literalidade. Para chegarmos, epistemologicamente, à conclusão de que a realidade absoluta só pode existir na imaginação psíquica e que, apesar da dimensão universal nos apresentar o arquétipo humano e muitos outros, cada indivíduo é único, complexo, criativo e insubstituível, apesar de não ser imprescindível para a categoria universal, assim como sua realidade particular também não é imprescindível para o universal. Mesmo assim, elas se interdependem complementarmente.
Essa é uma das razões que contribuíram para que psicologia analítica, até hoje, fique apartada da academia científica, que ainda busca, iludidamente, categorias universais, baseadas em evidências passiveis de controles, dados estatísticos e comprovações experimentais, para definir a alma humana, que é indefinível, onde cada especialidade tenta reduzi-la e enquadrá-la a determinantes bioquímicas, traumáticas, genéticas, orgânicas, alimentares, culturais, sociais, patológicas, religiosas, ambientais, psiquiátricas, astrológicas, neurológicas, ancestrais, entre outros.
Por isso, todas as narrativas reducionistas que buscam explicar o incompreensível e o inexplicável, como os processos sintomáticos de automutilação ou suicídio na adolescência, na maioria das vezes, servem muito mais para aliviar nossa angústia, diante do mistério da vida, frente a essas questões que, de alguma forma, em função da dimensão psicóide do inconsciente coletivo e da consciência coletiva, estão presentes no íntimo de todos nós. Essa realidade psíquica produz, nas pessoas que estão desconectadas da dimensão simbólica, padrões unilaterais e absolutistas, que vão desde a identificação com aquilo que é aceito como o bem ou como o mal, sempre de forma unilateral, atuando num dos lados, e projetando a outra face da referência opositiva em algum depositário, que obviamente tem ganchos para receber essa projeção. Porém, quanto a angústia passa a ser aceita e trabalhada metafórica e simbolicamente, como eterna companheira existencial, ela passa a ser geradora tanto dos desconfortos reflexivos e afetivos, quanto de toda potencialidade criativa humana. Neste sentido que a psicologia analítica trabalha, contribuindo para que a lise, que significa quebra, separação e dicotomia, seja vivenciada imaginalmente, para que a não lise, que é a análise, que objetiva a integralidade entre luz e sombra, consciente e inconsciente, sirva para despertar o respeito e o amor próprio e, consequentemente, ao próximo.
À luz da psicologia analítica, os símbolos funcionam como transdutores da energia psíquica, como verdadeiros dínamos que tem a capacidade de transformar suas formas de expressão. Por isso, ao simbolizarmos um sintoma, ele pode deixar de se expressar de forma mórbida e passar a se expressar por meio de produções criativas. Os símbolos falam a língua da alma e, consequentemente, dos arquétipos. Eles estão presentes desde o nível mágico/arcaico da psique, com potencialidade curativa, apesar de também serem destrutivos. Acessamos, conscientemente, apenas as imagens simbólicas, invocando a totalidade do arquétipo que ela reflete. As imagens podem despertar os instintos e os atos da vontade, por meio da natureza psicóide do arquétipo, independentemente de serem compreendidas racionalmente. Neste sentido, a fantasia de se cortar, ou até de praticar o autoextermínio, poderá desencadear efeitos reais de ressignificação ou, se a estrutura do complexo dominante continuar imperativa, na literalização das fantasias. Por isso, meios expressivos como desenho, pintura, imaginação ativa, ampliação dos sonhos, entre outros, ajudam a expressão das imagens simbólicas, porque com despertar da percepção estética e reflexiva da angústia, ela passa a ser incubadora da potencialidade criativa e curativa.
Partindo destes pressupostos, os afetos podem ser vivenciados na concretude temporal e espacial do aqui e agora ou da realidade fantástica das produções mentais, reconhecidos conscientemente ou permanecerem imperceptíveis e inconscientes. Dependendo da intensidade e rede associativa que o afeto ativar em nós, incluindo todas as vivências registradas em nosso inconsciente pessoal, preservadas e presentes desde a nossa concepção, além dos instintos e arquétipos advindos do inconsciente coletivo, o afeto poderá se manifestar através de emoções que, por sua vez, produzem modificação na configuração da energia psíquica e na bioquímica emocional, interferindo na dinâmica endócrina e hormonal, alterando também a energia vital. Por isso, Psique e Soma (Zoé e Bios, Alma e Corpo) são inseparáveis, e são igualmente suscetíveis às influências afetivas advindas tanto das situações concretas, quanto das imaginárias, do ambiente físico e material ou do energético e imaterial. Aliás, na minha prática clínica, fica evidente que mais de 75% das queixas trazidas pelos clientes são por questões imaginárias, desatreladas das condições concretas do presente, mas que aparecem como afetos advindos de situações subjetivas do passado, conectados com as temáticas de culpa, raiva, ressentimento, vingança, vitimização, mágoa, arrependimento, luto, perdas, entre outras, ou para questões do futuro, como ansiedade, medo, pressa, conquista, sucesso, fama, riqueza, poder, finitude, envelhecimento, etc. Com isso, quando somos afetados, seja lá por que, como e de onde, ele passa a ser um fenômeno autêntico, temporal e espacialmente, produzindo efeito na nossa existência.
O Ego, que é o administrador da consciência, é arquetípico, enquanto potencialidade universal e, no construto teórico da psicologia analítica, é compreendido como o primeiro complexo constelado, para que aconteça o desenvolvimento da personalidade, depois do Self ou si mesmo, que equivale centelha divina, representada pela imagem arquetípica da Imago-Dei. Sua concepção surge simultaneamente ao advento da nossa capacidade proprioceptiva. Por isso, suas bases fundantes são corporais e instintivas, a despeito de emergir da dimensão arquetípica do inconsciente coletivo, o Ego fica muito mais apegado com Bios do que com Zoé. A consciência do Ego emerge devido a sua conexão com inúmeras ilhas, que armazenam o registro dos fragmentos afetivos desde nossa concepção, que é a base do nosso inconsciente pessoal, registrada na forma de memórias. O ego nos possibilita a ilusão de continuidade temporal e espacial, como acontece com as películas cinematográficas, devido a velocidade que as imagens são passadas. Porém, o Ego depende tanto da consciência coletiva, quanto dos arquétipos e os dominantes do inconsciente coletivo. Desta síntese é que surgem as Personas, outra potencialidade arquetípica, que são nossas máscaras sociais e relacionais, tão necessárias para salvaguardar nosso existir e interagir coletivo, social e interpessoal.
O complexo do Ego necessita estar bem fortalecido, ancorado na consciência, emulando continuamente sua experiencia de continuidade diante das miríades de afetos, naquilo que imagina ser a realidade, para não ficar à mercê das perturbações psicopatológicas. Porque a todo instante existe o risco eminente de um outro complexo ganhar primazia sobre o Ego, modificando a configuração da energia psíquica e dominando a consciência, podendo ser tão absoluto a ponto de transformar o indivíduo num autômato, influenciando suas ideias, percepções, atitudes, mente, corpo e realidade. Isso acontece em função da capacidade do Ego em psiquificar os fenômenos, ativando a dimensão psicóide do inconsciente coletivo, com sua potencialidade arquetípica, transcendendo a matéria e os limites do tempo e espaço, porque os complexos são autônomos, influenciam corpo e mente, interditando a crítica reflexiva e ética.
Afetos são todas as intercorrências que, de alguma forma, interferem na dinâmica da configuração da nossa energia psíquica e energia vital. Quando esses inputs, expressão da língua inglesa muito usada na TI – tecnologia da informação, que significa entrada, nos acometem, eles irão disparar uma sequência de estímulos que ativam nossa dimensão neurofisiológica, mobilizando o cérebro, que é uma máquina eletro coloidal, responsável pela gestão biológica, além de processar todas as informações recebidas. Atualmente a neurociência trabalha com a hipótese de que as emoções estão intimamente ligadas ao sistema límbico, ativando mecanismos de recompensa (prazer, satisfação e pertencimento) ou de punição (desgosto, aversão e exclusão).
Simultaneamente ao estímulo neurocerebral, o sistema endocrinológico, por meio do eixo hipotálamo-pituitária-adrenal, é ativado para que aconteçam as expressões emocionais do afeto, alterando toda a bioquímica hormonal, retroalimentando os neuroreceptores correspondentes as mais variadas expressões emocionais como medo, raiva, desejo de fuga, gratificação, atração, alegria, tristeza, prazer, dor, entre outras. Com isso, o sistema autoimune também fica alterado, consonante com a dinâmica do estresse, ao criar situações de alarme, que significa deixar a nossa complexidade biopsicossocial e espiritual armada para atacar, fugir, ficar paralisada ou aceitar passiva e resignadamente o agente afetivo. Infelizmente, algumas pessoas, diante do conflito, sem prontidão para transcendência integrativa e criativa e de permanecerem nestas quatro atitudes estéreis, desistem dos seus sonhos, e desistir equivale a querer deixar de existir e, neste momento é que surgem as doenças mais irreversíveis e mórbidas.
Os afetos fazem nosso organismo oscilar entre os estados de simpaticotonia ou parassipaticotonia, produzindo ou inibindo um ou mais dos principais neurotransmissores como acetilcolina, adrenalina, noradrenalina, epinefrina, dopamina, endorfina, serotonina, entre outros.
Desta forma, os afetos atuam como inputs, estímulos eliciadores, indutores psicofísicos ou, na sua forma nociva, como noxas, que acabam interferindo na nossa capacidade de julgamento sensorial, sentimental, mental e intuitiva, produzindo reações corporais e atitudinais, na forma de outputs ou reações, equivalente a saídas ou resultados, em decorrência dos afetos recebidos. As reações são as mais diversas, e dependem do estado de integridade egóica. Neste sentido, um Ego doente e neurótico, que pode apresentar-se na persona de um indivíduo muito frágil e suscetível ou muito rígido, afeito ao poder, unilateral e controlador, diante de um determinado afeto, pode sucumbir e fragmentar-se. Apenas quando o Ego está saudável, por ser flexível, dinâmico, plural e estruturante diante da diversidade e dos diferentes, mantendo sua capacidade integrativa de simbolizar e metaforizar, poderá ressignificar o afeto, por mais unilateral, literal, dramático ou traumático que seja, impedindo a constelação autônoma dos complexos patológicos.
O Ego saudável, é aquele que segue sua jornada heroica sacrificando-se pela coletividade, atendendo o chamado do Self, que é o processo de individuação, servindo para que acabem as desigualdades, e que floresçam o respeito da liberdade, o amor e a compaixão. Por outro lado, o Ego doente, está identificado com a jornada do herói equivocada, almejando, no seu término, riqueza, poder e prestígio, presente nos indivíduos egoístas e ególatras, que vivem a serviço do próprio Ego e não do Self. Muitos indivíduos tomados pela jornada equivocada do herói, quando conseguem posição de poder, atuam como o salteador ideológico, um sujeito obsessivo que age como um rato, sabotando, corroendo, roendo, infectando, destruindo e contaminando. Tudo em nome dos seus interesses instintivos e territoriais.
Jung nos ensina que todo vaidoso, obcecado pelo poder e identificado pela Persona do ídolo, ou do mito, mais cedo ou mais tarde, será visitado por Ágon, o conflito trágico, que aparece com intuito de purificar a alma, ao expor o lado sombrio e a fragilidade do Ego inflado, que estava escondido pela hybris do excesso e da exorbitância das suas atitudes, enantiodromicamente reparada por Ananke, a deusa da necessidade e do destino. Essa é a lei do eterno retorno! Mesmo assim, ao surgir a crise, pode acontecer o advento de um terceiro elemento, o tertium non datur, que vem para que aconteça a superação evolutiva.
Uma das mais significativas noxas, que na homeopatia equivale ao afeto desencadeador de sintomas, é o sentimento de arrependimento, gerador de culpa, devido ao sofrimento psíquico pelo pesar de ter feito ou não ter feito algo, muitas vezes desencadeando comportamentos de autopunição ou interdições paralisantes, que a atual medicina patologizante e medicalizante rotula com síndrome do sabotador, do vitimismo ou do impostor. O interessante é que este afeto é produzido pelo sistema de crenças que o indivíduo carrega, tornando-o responsável absoluto pelo passado, tirando-lhe a possibilidade do auto perdão, devido seu desconhecimento, ignorância ou tomada de atitude impulsiva e reativa, diante de algum afeto eliciador de algum complexo e do medo. É interessante ressaltar que todo sentimento de culpa está atrelado a uma fantasia de poder absoluto, como se toda responsabilidade do que foi feito ou deixado de ser feito, é dele.
Nosso passado não deveria causar danos no presente. A maturidade adquirida pelas experiencias vivenciadas não poderiam ser usadas como forma de punição, arrependimento e culpa. Essa atitude é cruel e gera muita dor e sofrimento. O perdão é uma vivência de foro íntimo. Leon Tolstoi afirmou que “Aquele que realmente conhece Deus não achará necessário perdoar a seu irmão; só precisará perdoar a si mesmo, por não haver perdoado bem antes”. Na mesma direção, James Hollis, no livro: A passagem do meio p. 27, afirma que “Se não tivéssemos avançado e cometido esses erros e colidido contra aquelas paredes, teríamos certamente permanecido crianças. Rever a vida a partir da posição privilegiada da segunda metade dela requer a compreensão e o perdão do inevitável crime da inconsciência. Mas deixar de ficar consciente na segunda metade da vida significa cometer um crime imperdoável.”
Com isso, o perdão deve acontecer, em primeiro lugar, no nosso íntimo. Este deve ser o sentido da metáfora cristã sugerindo que ofereçamos a outra face quando nos sentirmos agredidos pela vida. Esta parábola nos faz refletir que devemos deixar de ofertar sempre o mesmo lado da face, que nos faz ver e sermos vistos continuamente da mesma forma. A metáfora de oferecermos a outra face nos estimula a sairmos das repetições masoquistas, autopunitivas, derrotistas, culposas, vitimarias, ressentidas, medrosas, inferiorizantes, arrogantes, unilaterais ou infantis e reativas, rumo a atitudes mais plenas, plurais, inclusivas e integrais, reconhecendo que o cotidiano ordinário pode ser extraordinário, sem a necessidade de shows dramáticos e espetaculares.
A peça teatral produzida por Nelson Rodrigues intitulada: “perdoa-me por me traíres”, assim como sua dimensão opositiva: “perdoo-te por te traíres”, são complementares, porque sempre existe uma cumplicidade bilateral nas questões de traição, que surge para denunciar que a confiança, que deveria significar um contínuo fiar com o outro, deixou de existir e, neste caso, para superar a culpa do arrependimento, só nos resta nossa auto indulgencia, perdoando-nos para possibilitar que o outro, traído ou traidor, possa também se perdoar, haja vista que, nesta perspectiva, o perdão é de foro íntimo e ninguém pode ter a supremacia ou o poder de oferecer ao outro.
Paz e Bem
04 de julho de 2019
WALDEMAR MAGALDI FILHO. Psicólogo, especialista em Psicologia Junguiana, Psicossomática e Homeopatia. Mestre e doutor em Ciências da Religião. Autor do livro: “Dinheiro, Saúde e Sagrado”, Ed. Eleva Cultural, coordenador dos cursos de especialização em Psicologia Junguiana, Psicossomática, Arteterapia e Expressões Criativas do IJEP – Instituto junguiano de Ensino e Pesquisa (www.ijep.com.br), oferecidos em Brasília, Rio de Ja