“Do meio dia da vida em diante, só aquele que se dispõe a morrer conserva a vitalidade, porque na hora secreta do meio-dia da vida se inverte a parábola e nasce a morte. A segunda metade da vida não significa subida, expansão, crescimento, exuberância, mas morte, porque o seu alvo é o seu término. A recusa em aceitar a plenitude da vida equivale a não aceitar o seu fim. Tanto uma coisa como a outra significam não querer viver. E não querer viver é sinônimo de não querer morrer. A ascensão e o declínio formam uma só curva.” (C. G. Jung – OC 8/2, par. 800, pg. 364)
Noites em claro. Temática recorrente em consultório. Render-se ao bom sono não é tão simples quanto possa parecer. Esse pode ser o desejo de muitos que são torturados pela insônia. Mas, a dura realidade dos medicamentos usados para dormir, das distrações eletrônicas, o empanturramento alimentar, o abuso de álcool, os rituais de masturbação, passar o tempo nas mídias sociais, e abuso das substâncias entorpecentes lícitas ou ilícitas, traduzem a dificuldade em dormir. Vemos o adoecimento de uma população presa numa realidade falsa onde se esconde a verdadeira causa dos conflitos.
Dormir permite a homeostase do corpo e da psique. Dormimos um terço da nossa existência e se não fosse o sono uma função importante, poderíamos considerar um erro na evolução dos homens e dos animais que compartilham dessa necessidade. O sono é um estado fisiológico completo que não pode ser evitado, não é resultado de uma atividade cerebral reduzida, mas sim de consciência diferenciada. Conseguimos ficar alguns dias sem água, comida, mas não sem sono, pois nosso organismo colapsa. A falta de sono influência a capacidade de memorização, cognição, desempenho motor, além de irritabilidade, cansaço, dores de cabeça, visão turva e alterações no metabolismo. Animais que são expostos a privação do sono morrem em poucos dias e homens enfrentam estados de loucura. O que comprova sua fundamental importância na vida.
Mas, se o sono é desejado e necessário porque é difícil dormir? Provavelmente, porque adentrar nos mistérios do inconsciente, para muitos indivíduos, é assustador, porém, sem isso, a individuação fica inviável. Para Jung, individuar-se significa tornar-se um ser único, de uma singularidade incomparável, o nosso próprio si-mesmo. Um processo de autoconhecimento, de desenvolvimento da totalidade que busca integrar consciente e inconsciente, não tendo como meta a perfeição, mas sim, o reconhecimento das antinomias e sombras. Esse processo nos prepara não só para vida, mas também para aceitação da morte.
Dormir é morrer um pouco a cada dia. Se entregar ao sono é permitir o mergulho ao abismo do inconsciente, que é sombrio e desconhecido, e que não temos controle, tão apavorante quanto a morte. Por isso, nos botamos em fuga de nós mesmos, do autoconhecimento, da expansão de consciência, muitas vezes com medo da dor, do sofrimento, por não entendermos que saber a finalidade dos problemas não é a solução somente, e sim uma ponte para o crescimento. Dormir nos causa medo, tal qual a morte. Atualmente nos afastamos do sono, tal como nos afastamos da morte. Negamos o sono e consequentemente os sonhos, impedindo que tragam à tona segredos que a consciência desconhece. Negamos a morte e consequentemente a vida.
Será que o medo do sono profundo, do desconhecido, do inconsciente, da dor que ele possa desencadear ao ser revelado, é tão maior e mais aterrorizante do que todas as dores conscientes?
Para Jung, que defende a ideia da integração dos opostos, fugir da morte é fugir da vida. A morte é vivenciada como destino de todas as almas. É um processo natural da vida que não controlamos, por isso a tememos e negamos. Desejamos transcende-la por medo do desconhecido. Mas negar a morte nos afasta da totalidade de nós mesmos, do conceito central da Psicologia Analítica que é o processo de individuação.
Nesse processo unitivo, o ego teme sua aniquilação. Por isso, impõe a vigília, fugindo do enfrentamento desse desconhecido, das sombras, dos complexos, das mensagens trazidas pelo inconsciente. Impede a conscientização dos sonhos, cria uma tensão contraria ao processo de individuação, quando provoca a unilateralização, a separação dos opostos – consciente e inconsciente. O ego em defesa de sua própria existência, se torna o principal sabotador da expansão da consciência e nega as mensagens do inconsciente, se distanciando cada vez mais da totalidade, do Self.
Os sonhos, canal de ligação do inconsciente ao consciente, trazem imagens arquetípicas e associações de pensamentos que se criam espontaneamente na nossa intenção consciente, e servem de porta-voz ao inconsciente. Assim, a análise dos sonhos pode ajudar em oposição a esse ego alienado e medroso.
Os sonhos oferecem a oportunidade de um mergulho profundo e libertador ao nosso inconsciente. Trazem a potencialidade da transformação dos complexos inconscientes para a consciência. Para Jung a metáfora é o símbolo que cura.
Jung sabia da importância dos sonhos para a compreensão dos aspectos inconscientes. Ele se utilizou dos sonhos para conduzi-lo ao processo de individuação durante sua vida. A ampliação analítica e aprofundada dos seus próprios sonhos possibilitou o mergulho no seu inconsciente e o guiou para realização do seu si-mesmo.
Ao analisarmos um sonho, podemos ter uma ideia da força que pode estar equilibrando ou distorcendo pensamentos, sentimentos e conduta moral do indivíduo. O trabalho analítico com os sonhos pode trazer novas perspectivas de vida, permitindo ao inconsciente continuar enviando novas mensagens, num processo continuo de autoconhecimento e transformação. Quanto mais atenção damos as mensagens e quanto mais diálogos com esses símbolos trazidos do inconsciente produzimos, menor a distância entre o eixo ego x Self.
A partir da segunda metade da vida, a que Jung denomina metanoia, durante a curva descendente, onde cada vez mais nos aproximamos da morte e do morrer, há uma intervenção de valores e ideias. Ficamos cada dia mais perto da morte e a necessidade por respostas existenciais afloram em nós uma busca da espiritualidade, do sagrado. O Self clama pelo retorno a nossa essência, nosso eu primordial. Assim, o ego deve render-se ao Self para que ele nos direcione no caminho do processo de individuação.
Para Jung, a morte deveria ser nossa meta, pois vida e morte compreendem o mesmo ciclo, são duas fases de uma totalidade, ou seja, só permanece vivo quem estiver disposto a morrer com a vida. Aceitar e abraçar a morte, tal como a vida, é abrir mão do medo. Nos é possibilitado, através do autoconhecimento, do mergulho na escuridão de nós mesmos, fazermos as pazes com tudo aquilo que negamos durante a primeira metade da vida. A proximidade da noite ao entardecer de um dia, se assemelha a mesma proximidade da morte ao entardecer da vida.
Receber a vida como ela se apresenta, com toda sua impermanência, é abrir mão do controle. Entregar-se ao sono sem medo do desconhecido, é poder mergulhar no inconsciente. Assim, podemos desnudar o Self dos invólucros das personas que fazem parte de nós, pois é através do reconhecimento e integração das sombras que promovemos a integração com a luz.
Entre o dormir e o despertar acontece a clareza do inconsciente. A cada manhã, ao acordarmos do sono, expandimos nossa consciência. E é nesse intervalo que recebemos os sonhos com suas imagens arquetípicas, recheados de símbolos. Os símbolos, por serem propulsores da espiritualidade, pois ligam o inconsciente ao consciente, têm o poder da transformação. E é na despedida de cada dia, que buscamos nos reconectar com o sagrado em nós, reconhecendo nosso sol interior, que igual ao Deus sol, busca iluminar-se ao entardecer da vida. Nesta célebre citação de Jung: “Quem olha para fora sonha e que quem olha para dentro, desperta”, fica claro que negar o sono é um subterfúgio neurótico, para permanecer anestesiado no sonho da ilusão de realidade cotidiana e profana.
Referências
JAFFÉ, Aniela; FREY-ROHN, Liliane; FRANZ; Marie-Louise von. A Morte à Luz da Psicologia. SP: Cultrix, 1995.
JUNG, Carl. G. O homem e seus símbolos. 2. ed. RJ: Nova Fronteira, 2008.
_________ Psicologia do inconsciente – 24. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
_________ Memórias, sonhos e reflexões. 30. ed. RJ: Nova Fronteira, 2016.
_________ A natureza da psique – 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2017a.
KÜBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a morte e o morrer. 7. ed. SP: Martins Fontes, 1997.
KÜBLER-ROSS, Elisabeth. A morte: um amanhecer. SP: Pensamento, 2006.
WHITMONT, Edward C. Sonhos um portal para a fonte. SP: Summus, 1995.
Flávia Melas Arouca Marinho – Especialista em Psicologia Junguiana, Psicossomática e Membro Analista em formação pelo IJEP. www.ijep.com.br