Um homem, por sua capacidade de curar e prever o futuro, ganhou fama e dinheiro. Até que um dia descobriram um outro lado seu e, para os humanitários, passou a ser considerado um impostor e charlatão. Imaginaram então que ele fizera um pacto com o demônio.
Esse homem viveu na Alemanha no século XVI e era conhecido como Dr. Fausto. Dramaturgos, ao sabor de suas reflexões sobre o misterioso sentido da vida, contavam essa história com as cores de suas confabulações, transformando-as em um belo mito que encantou o menino Johann Wolfgang von Goethe, quando este assistiu a uma encenação dessa história em um teatro de marionetes.
Depois de um fato em que uma jovem engravidou de um desconhecido e praticou infanticídio por achar que foi vítima de um Demônio, Goethe começou a escrever o primeiro fragmento da história do Fausto. Dedicou sua vida, ao longo de 60 anos, a enriquecê-la com a sua imaginação, tornando-a sua obra-prima. A obra “Fausto zero” ficou conhecida em 1788, “Fausto parte I” em 1808 e, por fim, “Fausto II” foi publicada alguns meses depois de sua morte, em 1832.
Carl G. Jung, aos 16 anos, fez contato com o “Fausto” de Goethe por meio de sua mãe, que o encantava lendo passagens dessa história. Mais tarde, como pensador e médico, no século XX, mergulhou no estudo dessa obra e entendeu que a “alma” humana em si mesma não se pode encontrar em nenhuma parte, mas apenas se ater às suas expressões em suas múltiplas formas de manifestação, como aquelas que ocorrem nas obras literárias. Daí a importância para o psicólogo utilizar a literatura e sair da aparente segurança de sua especialidade, pois não se pode entender a psique humana limitando-a às observações de laboratório e do consultório. Nos tempos atuais, em que prevalecem rapidez e facilidades, surgiu um gênero literário denominado Graphic Novel, o Romance Gráfico que vem transformando obras literárias com narrativas densas e complexas em uma leitura resumida e facilitada por desenhos e algumas frases bem construídas do autor. Nesse gênero, foi publicado recentemente “Fausto em quadrinhos: uma tragédia”, que traz juntas as histórias de “Fausto zero” e “Fausto I”.
A narrativa começa com a intertextualidade do tema bíblico do Livro de Jó. Deus é desafiado por Mefistófeles, o demônio, quem promete provar o quanto a obra divina, os homens, é imprestável. Para isso, Fausto, como Jó, um homem bom e esforçado, será levado por Mefistófeles a se afastar das graças divinas.
Deus e o Diabo, espírito e instinto, são as polaridades que estão juntas no inconsciente e se apresentam na consciência de forma separada para caracterizar o bem e o mal. Quando vivemos apenas uma dessas polaridades, estamos na ilusão da unilateralidade.
Para Jung, quando estamos conscientes de nossos atos, eles não são nem bons nem maus e sempre vão poder causar o mal e o bem ao mesmo tempo. Nunca saberemos quando nem a quem, o importante é tomar consciência.
O Dr. Henrique Fausto, objeto da disputa, vivia intensamente o conhecimento de todas as áreas que o nosso “Eu” pode dominar (filosofia, direito, medicina, teologia e ciências em geral), talvez como alguém nos dias de hoje que busca na internet, de forma insaciável, um número infinito de informações até ultrapassar sua justa medida. No entanto, Fausto reprimiu a experiência com os seus sentimentos e não viveu a vida mundana. Chegou à meia-idade e não conseguiu encontrar o sentido da vida, entregando-se à magia com a intenção de desvendar os mistérios da existência e do universo. Desesperado por não ter um sentido para viver, pensou em acabar com a própria vida tomando veneno. Esse é o momento em que Mefistófeles lhe propõe um pacto para tornar sua vida prazerosa: entregar sua alma ao Diabo se um dia precisar dele.
Fausto e Jó viveram na unilateralidade da extrema obediência a tudo que fosse o politicamente correto, até que seu outro lado, o instinto do prazer impedido de se expressar, trouxesse o desequilíbrio e sua vulnerabilidade a essa necessidade em transformar-se para conseguir a compensação da psique.
Depois do pacto aceito, Fausto começa a mergulhar nas aventuras da vida com as suas emoções que chegam de forma adolescente e desintegrada. Com a malícia e a astúcia de Mefistófeles, ele persegue a jovem virgem Margarida, com a sua pureza, e a engravida. Às escondidas, ela pratica o infanticídio e torna-se alvo do Diabo, que agora pode atuar sobre ela.
Quando os homens se confrontaram com a busca do prazer sexual e sua consequência natural em gerar os filhos que não queriam ter, a evolução tecnológica permitiu tirar a mulher de uma condição restritiva para viver com mais liberdade o prazer sexual sem essas consequências. Esse fato demonstra a evolução do Homo Sapiens como capaz de manipular as leis naturais do mundo animal.
Na construção da identidade do “Eu” masculino, o que não foi incluído pela concepção do que é ser másculo torna-se um aspecto inconsciente da personalidade, a qual chamamos de “alma” ou “anima”, uma representação do que é feminino em seu ser.
Um homem como Fausto tem em sua alma esse aspecto do Mefistófeles, que é seu lado capaz de destruir uma mulher ao projetar nela sua incapacidade de se relacionar com o componente feminino de si mesmo. O desenvolvimento apropriado da alma humana consiste em estabelecer um relacionamento adequado entre os aspectos femininos e masculinos de sua própria personalidade.
O homem bom e reto é posto à prova para que entendamos que o caminho de nossa espécie é levar o indivíduo a evoluir e aperfeiçoar sua natureza instintiva e tendenciosa à formação de tribos para nos tornarmos uma única tribo, a dos humanos, que amam uns aos outros como a si mesmos.
Carlos São Paulo – médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br / www.ijba.com.br