Quando chega o envelhecimento, recorremos à ciência na tentativa de reparar os estragos da idade. Nossas antigas lutas por um lugar de importância no mundo cedem lugar ao mistério que é a própria vida. Um olhar para quem está terminando sua vida lentamente faz-nos imaginar uma luta para domesticar a morte até que o medo dela permita-nos chegar ao lugar intemporal de onde emergimos ao nascer.
André Gorz, filósofo francês, fica recluso em companhia de sua esposa Dorine, prisioneira de uma doença degenerativa que a tortura sem piedade. Depois que a medicina varreu toda a esperança de um senso de controle da vida para lhes aliviar o sofrimento, o casal toma a decisão de eternizar a paixão com a própria morte. O amor arrebata as mãos de André e fá-las escrever sua última carta à amada Dorine. Um ano depois de escrevê-la, ele lacra-a e coloca-a na porta da sua residência. Para evitar interferências na decisão do casal, André fecha bem toda a casa e o casal comete suicídio. A carta encontrada, escrita por André, é o livro “Carta a D.”
Começa assim: “Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher.”. Ao tempo em que descreve as mudanças físicas, deixa claro o quanto que o amor não depende desse tipo de apreciação. Afinal, o encontro de almas que se fundem faz com que um não possa viver sem o outro. No amor, a alma habita um só corpo.
Diante da ameaça inevitável da perda da mulher, André sonhava com a silhueta de um homem em uma estrada vazia e em uma paisagem deserta que andava atrás de um carro fúnebre. Esse homem era ele e era Dorine que o carro levava. Não queria ir à sua cremação, não queria receber a urna com as suas cinzas; ouvia um canto que dizia “o mundo está vazio, não quero mais viver”, aí ele despertava. Nossos sonhos trazem mensagens relacionadas com os nossos sentimentos mais autênticos. Por meio deles, podemos experimentar a vida e a morte de uma forma mágica e até brincar com isso. Esse sonho fez André perceber que a escolha estava entre viver sem vida ou deixar a paixão ressoar no espírito que encontra unidade ao se dissolver no outro até existir uma única alma para esses dois corpos.
André pergunta por que amamos e queremos ser amados por determinada pessoa, excluindo todas as outras. Isso nos faz refletir sobre o que é trazer um outro para nossa vida. Não é preencher uma solidão ou atender alguma expectativa de completude, pois o amor é a própria incompletude. Esse fascínio não encontra expressão e abre mão de qualquer padrão imposto por alguma cultura. É uma bricolagem de tudo que é indizível.
A natureza propõe ao que é vivo um destino a cumprir e nele a preparação para a morte. No entanto, tendemos a querer contrariar essa natureza e encontrar formas de permanecer no teatro da vida de qualquer maneira, apegados ao medo do desconhecido. Buscamos, talvez, a fantasia de uma vida sem conflito e eternamente idêntica. Isso seria uma morte em vida. O sofrimento gerado por nossos erros é o modo como temos de evoluir até compreendermos o significado do sofrimento e mudar de nível dentro da evolução humana.
O pensamento mítico que expressam nossos temores, fantasias e expectativas do homem sobre a morte faz-nos entender que é mais evoluído vivermos a vida da melhor forma que conseguirmos do que gastarmos tempo e energia para lutar contra a morte. Somos livres para escolher ter consciência de nós mesmos e sem liberdade para escolhermos o destino.
O homem moderno apega-se à ilusão de uma ideia de felicidade que consiste em conseguir realizar todos os seus desejos. Essas expectativas nunca serão atendidas, pois existe uma outra ordem que rege nossas vidas. Quando essa consciência aparece, encontramo-nos com as mãos vazias e sofremos a metamorfose kafkiana, sentindo-nos como um grande inseto inútil e inapropriado para a vida, ou então nos transformamos em Don Quixote e saímos por aí transformando a paisagem calma dos moinhos de vento em batalhas terríveis.
O mistério do que acontece quando o corpo morre, a ciência não consegue responder. Mas o pensamento mítico, que conduz o imaginário do homem, precisa da ideia de que algo sobrevive além do físico. Então, é mais saudável adotarmos a ideia de que tudo vai continuar sem precisar buscar provas e muito menos acreditar. Basta saber que a verdade psíquica é a que prevalece, pois algo nos leva a sentir que a vida se comporta como se fosse continuar.
O envelhecimento do humano, em sua relação com o outro, precisa encontrar um sentido para sua existência. Alguns trilham um caminho permeado de uma paisagem cheia de saudades de um mundo que passou; outros buscam a aquisição de uma sabedoria em olhar com outra visão e sentir que nos aproximamos do lugar intemporal de onde emergimos ao nascer.
Carlos São Paulo – médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br / www.ijba.com.br