O que é verdadeiro em uma época quando se sabe da limitação do conhecimento humano que muda com as experiências? O que fazer quando percebemos a natureza de um homem gritar para expressar seu complexo mundo interior, quando seus semelhantes estão fixados no que é aparentemente padrão e não aceitam o que é diferente, atacando-o com as armas da ignorância? Realmente nascemos homem ou mulher, ou, como diz C. G. Jung no seu conhecido “Livro Vermelho”, “a pessoa masculina e feminina, não é só homem ou só mulher. De tua alma não sabes dizer de que gênero ela é.”. Essas são questões que apreciamos ao ler a obra “A garota dinamarquesa”.
“A garota dinamarquesa”, conhecido em edições anteriores como “A moça de Copenhague”, foi o primeiro romance do americano David Eberhoff, tendo ganhado, em 2016, uma adaptação para o cinema. David se inspirou na história real de Lili Elbe, quem escreveu suas memórias em um livro de publicação póstuma em 1933, “Man into Woman”. Não há um compromisso da literatura em narrar os fatos, mas sim uma verdade maior que se encontra em todos os humanos.
O romance conta a história de Einar, um rapaz que viveu no século XX como uma das primeiras pessoas que passou por uma cirurgia de afirmação de gênero. Perdeu a mãe ao nascer, foi criado por sua avó paterna e um pai portador de doenças raras.
Einar contemplou, por muitas vezes, a imagem sagrada da mãe cujo contato físico ele não pôde sentir, a não ser quando vestia o colar e as peças de roupas que restaram dela. Foi aos oito anos, em um desses rituais de contato, que o pai de Einar o surpreendeu com esses adereços femininos e transformou o momento sagrado do filho em uma transgressão dos costumes em que um menino não poderia usar roupas femininas.
Greta, uma jovem pintora, foi estudar arte na Dinamarca e Einar tornou-se seu professor. Ele era um jovem tímido que ela conquistou. Ao beijá-lo, Greta sentiu a sensação de beijar a si mesma e foi assim que se apaixonou por ele. Certo dia, já casados, ela usou Einar como modelo, fazendo-o vestir-se de mulher. Transformou o marido em sua musa inspiradora, enquanto algo desconhecido tocava memórias inconscientes e confusas do rapaz, fazendo-o descobrir uma verdade sobre a sua alma inconformada com o corpo em que habitava.
Sabemos que os diversos momentos em que Einar vestia-se de mulher na infância, e foi alvo dos assombros do seu pai, poderiam tornar-se memórias carregadas de energia para influenciar na formação do seu “Eu”. Mas, talvez, sem que nada disso houvesse acontecido, a história de Einar ainda fosse essa.
Os gêneros são determinados por características biológicas, sem levar em conta que cada alma poderá ou não se compatibilizar com o corpo em que habita. Alma aqui é um conceito junguiano da relação da psique com o nosso mundo interno. Nascemos com a condição de desenvolver uma ideia sobre quem somos por meio do “Complexo do Eu”, como descreve a Psicologia Analítica. Esse “Eu” poderá ou não se identificar com o corpo biológico.
Aprendemos sobre os comportamentos humanos analisando os mitos. “Hermafrodito” é um mito grego que mostra um corpo masculino dominado por uma natureza feminina. Criado pelas ninfas, tornou-se um jovem belo que não se interessava por mulheres. Um dia, enquanto descansava, a ninfa Salmácis grudou-se a ele e chamou as águas para que os unissem. Hermafrodito tentou se desvencilhar, mas uma força maior fez com que o seu corpo se fundisse ao da ninfa. Um só ser tornou-se dois, homem e mulher participando de um único corpo.
Einar, como Hermafrodito, foi sendo dominado por Lili Elbe. Esse foi o nome dado a sua interioridade feminina que estava aprisionada a um corpo que precisava se modificar para atendê-la. Greta foi aos poucos assistindo a essa transformação, mas, como todos que se amam, ela lutou ao seu lado, levando-o a médicos que diagnosticaram desde esquizofrenia até homossexualidade, já que precisavam classificar o que lhes era desconhecido.
Como poderemos expressar esse nosso mundo interior, com os seus segredos, sem ter que enfrentar uma sociedade que impõe regras, psicopatologizando tudo que não se define como normal dentro do conhecimento de uma época? O que fazer quando a natureza de um homem precisa se ajustar à sua verdade interior? São questões de que as ciências médicas vêm tentando dar conta no mundo atual.
Nascemos com genitálias masculinas, femininas ou ambíguas. Construímos uma realidade subjetiva de acordo com a complexidade do desenvolvimento da personalidade e nos aprontamos para amar um outro ser humano independente das regras estabelecidas como leis que definem as pessoas pela forma como direcionam seu amor.
Em cada indivíduo existem aspectos de si mesmo que são rejeitados. Quando o aspecto recusado é reprimido, criamos conflitos inconscientes, atacando, para compensar, um outro que espelha essas confusões. Essa é uma das razões para as pessoas enfrentarem grandes tensões, discriminação, dor física e psicológica, principalmente quando necessitam exercer a sua natural construção identitária. Felizmente, as ciências médicas contemporâneas vêm subtraindo de seu livro de categorização as situações no homem que foram patologizadas devido à não aceitação do diferente. Isso já é um caminho para desfrutarmos de uma humanidade melhor.
Carlos São Paulo – médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br / www.ijba.com.br