“Com o suor do teu rosto, ganharás a vida, até voltares ao pó…”. O mito bíblico da criação disseminado pela cultura judaico-cristã, seria portador de grande conteúdo simbólico para os povos do ocidente como o marco inicial da saga empreendida pelo homo faber na luta por sua sobrevivência biológica. Entretanto, como também apregoado em outra passagem da Bíblia – “nem só de pão vive o homem…” -, outras necessidades existenciais complementares clamam por cuidados especiais por parte do indivíduo. A saúde integral do ser humano seria então dependente do atendimento harmônico de todas as suas dimensões constitutivas: produtiva, intelectual, física, social, psíquica e espiritual.
Atuando como óbices à constituição plena do indivíduo, traços ontológicos que predispõem a pessoa para a ambição, ganância, egoísmo, orgulho e ostentação – entre outros atributos humanos que a fazem privilegiar o ter em detrimento do ser – são estimulados por valores proeminentes da cultura da sociedade deste hemisfério que enaltece o fazer e o consumir. Também, o crescimento exponencial da população mundial torna os recursos para a sua subsistência cada vez mais escassos, acirrando a disputa pelos mesmos. A conjunção desses fatores caracteriza um mercado em que a demanda por e a produção de bens e serviços crescem desmedidamente, sob a égide do capitalismo – sistema econômico hegemônico das sociedades a partir da era moderna.
Nesse cenário, compelidas pelo acirramento da competitividade do mercado de consumo, as organizações reagem aumentando de maneira explícita a pressão moral exercida sobre os seus líderes, na expectativa de obtenção de maiores resultados sistêmicos através destes tidos como responsáveis diretos pelo desempenho institucional. Adicionalmente, com a intenção tácita de fomentar ainda mais a capacidade de realização dos seus líderes, as organizações, secundadas pela sociedade de uma forma geral, instigam nos mesmos a expressão de um arquétipo em especial que interage diretamente com a dimensão produtiva do ser no ambiente de trabalho: o arquétipo do herói.
Por um lado, a cobrança excessiva por mais resultados na organização sem a existência de uma correspondente condição adequada de atendimento – tanto por insuficiência de recursos em geral quanto por limitações intelectuais, físicas e emocionais inerentes às condições naturais do ser humano -, causa importantes alterações nas condições psicofisiológicas do líder submetido a uma carga de demanda que não consegue suprir. Por outro lado, sendo mobilizado a se engajar, em prol da organização, em embates de crescente complexidade empreendidos pelo mercado competitivo, o líder personifica a saga insana ditada pelo mito organizacional por excelência dos tempos atuais que o deifica como um super-herói corporativo, idealização que mobiliza ainda mais o modo operativo do mesmo e, consequentemente, intensifica o seu quadro patológico geral.
Dessa maneira duplamente motivada, a dimensão produtiva do indivíduo no seu papel de líder organizacional tende a ser exacerbada e sobrepor-se às suas outras dimensões constitutivas – intelectual, física, social, psíquica e espiritual. A intensificação do desequilíbrio entre as dimensões elementares do ser tornam o líder paulatinamente mais distanciado de sua condição humana plena – no recôndito sombrio do super-herói corporativo ficam alojados traços pessoais ofuscados pelo brilho da função operacional preponderantemente ativada por este.
Provoca-se, assim, um estado de desarranjo na harmonia geral do líder como um ser biopsicossocial. Essa deficiência no equilíbrio das condições psicofísicas do líder traz como efeitos colaterais distúrbios generalizados do comportamento organizacional que implicam problemas estruturais crônicos, tais como: ausência de credibilidade nos líderes; baixo comprometimento com os objetivos institucionais; desalinhamento entre estratégias e ações; valores declarados inconsistentes com atos praticados; comportamento antiético; altas taxas de absenteísmo, rotatividade e afastamento; clima organizacional com predominância de medo, desconfiança, cinismo e conflito; identidade organizacional fragilizada; resistência a mudanças; insatisfação de clientes; resultados sistêmicos medíocres.
Atuando como força motriz desse modo operativo humano disfuncional, a atividade laboral – conquanto essencial para atendimento não somente dos requisitos materiais do indivíduo, mas também da sua necessidade própria de realização pessoal – pode aprisionar o líder, no atendimento aos requisitos de sua natureza como homo faber, a uma dinâmica patológica que gera graves sequelas para o seu quadro geral de sanidade: a alienação pessoal.
A Alienação Pessoal Como Óbice à Vida Criativa
O conceito de alienação pessoal será aqui recortada pela combinação da perspectiva filosófica (como um processo em que a consciência se torna estranha a si mesma, afastada da sua real natureza) com a perspectiva psicológica do termo (como um fenômeno decorrente do afastamento entre o ego – instância da personalidade controladora dos processos conscientes – e o Self – instância inconsciente e central da personalidade que mobiliza o indivíduo para a sua totalidade). Para Hopcke (1999), a alienação pode causar nas pessoas uma ausência de sentido para as coisas, depressão, uma sensação de estar à deriva, sem direção ou esperança – sentimentos que parecem caracterizar tão frequentemente a vida contemporânea.
Discorrendo sobre o processo de alienação pessoal pela visão da psicologia analítica, Edinger (1972) argumenta que a integridade e a estabilidade do ego dependem de uma viva conexão com o Self, conexão essa que constitui um canal de comunicação entre a personalidade consciente e a psique inconsciente e que deve permanecer relativamente intacta para que o ego suporte as tensões e cresça. Referida conexão é de importância vital para a saúde psíquica, proporcionando fundamento, estrutura, segurança, energia, interesse, significado e propósito ao ego.
Avaliando os danos do processo de alienação pessoal na capacidade de realização criadora do indivíduo, Neumann (2006) salienta que a consciência hipertrofiada separada do inconsciente é uma decorrência da exaustão dos componentes emocionais do ego. A diferenciação especializada da consciência em funções separadas (material e emocional) intensifica a perda da emocionalidade, condição que, apesar de se mostrar essencial para auxiliar o homem moderno em seu esforço racional, revela grandes aspectos sombrios. Assim, o conhecimento consciente pressupõe a repressão dos componentes emocionais, sendo típico de atividade não criadora desde que atividades criadoras requerem elementos de natureza fortemente emocional. Ratificando a relevância desse enfoque, Sanford (1977) atesta que uma vida criativa não realizada torna-se envenenada desde que a natureza quando é subvertida prepara a sua própria vingança, situação que apresenta o potencial para o adoecimento pessoal.
A Pedra Nossa de Cada Dia: Compulsão ao Trabalho
Pode-se afirmar que trabalhar se tornou uma religião em si mesma; é algo empreendido com fervor religioso e preenchido com os ídolos da fé. Mas tragicamente para muitas pessoas, o trabalho perdeu a alma. Para muitos de nós o trabalho, como símbolo de esperanças e sonhos, começa a perder a graça rapidamente. Se somos promovidos, descobrimos que a importância atribuída a um determinado cargo rapidamente se transforma em pesada responsabilidade. Se, ao contrário, não somos promovidos começamos a sentir que nossos esforços foram em vão. Magoados, tornamo-nos deprimidos, resignados ou amargos. Se, ainda pior, formos despedidos ou forçados a nos aposentar antes da hora para darmos lugar a sangue novo, percebemos o quanto somos descartáveis e nos sentimos abandonados e traídos (ZWEIG; WOLF, 1996).
Segundo observam Zweig e Wolf (1986), em alguns setores da sociedade ocidental, chega-se a acreditar que o trabalho é vida, que vivemos para trabalhar em vez de trabalharmos para viver. Chegamos a assumir que todas as nossas horas de vigília devem ser usados para o trabalho, para ganhar a vida, ou para tentar conseguir mais segurança para o futuro. Assim, o tempo dedicado à alma encolhe drasticamente, e Cronos, o pai-tempo, transforma-se em um feitor de escravos. Os dias da semana desaparecem, enquanto tentamos colocar em dia o que temos que ler, escrever ou arquivar no trabalho. E ainda existem os prazos, sempre prestes a vencer, parecendo guilhotinas eternamente suspensas sobre nossas cabeças.
Ainda na elaboração desses autores, o trabalho que no início brilhava pleno de promessas, torna-se maculado e adquire um sabor de Sísifo. No conhecido mito grego, Sísifo, o esperto rei de Corinto, em sua arrogância lutou contra os deuses. Por duas vezes atingiu o indizível: burlou a morte. Os deuses, para punir seu orgulho planejaram para ele uma tarefa tortuosa no submundo: empurrar uma pedra ladeira acima, observá-la rolar de volta, e empurrar de novo. Sísifo foi sentenciado a executar esta tarefa por toda a eternidade. Muitas pessoas vivem o trabalho como a tarefa de Sísifo: algo monótono e repetitivo, um esforço não apreciado que não conduz a lugar algum, personificando uma luta esforçada, mas inútil. O trabalho nunca é feito. As tarefas nunca são terminadas; o trabalhador provavelmente nunca será reconhecido; e a pedra inexoravelmente rolará ladeira abaixo mais uma vez.
Por sua vez, Shackelton (1991) coloca que encontramos a sombra no ambiente de trabalho quando as pessoas põem de lado suas necessidades pessoais de lazer, intimidade e vida familiar, tornado-se máquinas de trabalho em tempo integral. É inevitável que esse comportamento viciado resulte num estilo de vida altamente desequilibrado e compulsivo. Na versão de Zweig e Abrams (1991), a pessoa que trabalha compulsivamente está mais possuída pelo eu demoníaco do que encantada pelo processo criativo, não conseguindo soltar suas próprias rédeas. O trabalho compulsivo está sendo visto como um vício, um comportamento de compulsões de repetição, como o jogo ou o comer compulsivo.
O trabalho compulsivo pode ter suas raízes nos padrões familiares, da mesma forma que a maioria dos vícios. Em algumas famílias, as crianças são recompensadas apenas em função de seu desempenho; seu senso de valor pessoal fica totalmente ligado à ideia de vencer. Em outros lares, é o fracasso de um pai incompetente que incita a criança a buscar o sucesso, a tornar-se, na verdade, a sombra do pai (SHACKELTON, 1991).
O Trabalho Sem Alma e a Alienação Pessoal
A compulsão ao trabalho seria uma disfunção comportamental induzida no líder, tendo como fator causal a intensificação da demanda pela organização de um desempenho desmedido por parte do mesmo, constituindo um estímulo que encontraria respaldo nos traços ontológicos do indivíduo que o induzem a priorizar o ter em prejuízo do ser, e seria reforçado pelos valores da sociedade ocidental que glorifica o fazer e o consumir. Dessa forma, o trabalho sem alma – o vício do trabalho compulsivo – como expressão da exacerbação da dimensão produtiva do ser, configura o estágio inicial do processo de alienação pessoal do homo faber quadro que será aguçado quando o líder passar a protagonizar a persona do super-herói corporativo.
Pela perspectiva de Zweig e Abrams (1991), o preço é alto para todos os envolvidos nessa dinâmica do trabalho compulsivo: a família sofre com a ausência da pessoa; o trabalhador estafado sofre a deterioração física e emocional causada pelas exigências de uma vida injusta; e as empresas sofrem a rotatividade de executivos. Referidos autores caracterizam essa situação através da perspectiva de Douglas LaBier (em Modern Madness) que denomina os efeitos da dinâmica do trabalho compulsivo de “as baixas da guerra do trabalho” – aquelas pessoas saudáveis que se ajustaram, com grande custo emocional, a condições que podem ser boas para o progresso da carreira mas não para o espírito. LaBier sugere que o sucesso pessoal dessas “baixas do trabalho” em geral significa apenas uma boa adaptação, um ajuste à persona coletiva da organização, por meio da repressão das qualidades que não se adequam à imagem da empresa.
A pressão dos ambientes de alta tensão molda-nos em formas retorcidas, levando-nos a fazer tratos a um grande custo para nós mesmos. O sucesso deflagra sintomas de arrogância, enquanto que o fracasso leva a uma dolorosa vergonha – um dia estamos voando alto e, no outro, no fundo do poço. Quando cultivamos uma ambição extrovertida, uma personalidade forte e competitiva, nossa introversão vai para a sombra; esquecemos como florescer longe das luzes da ribalta, como receber os tesouros da solidão, como encontrar recursos ocultos dentro de nós (ZWEIG; ABRAMS, 1991).
O lado escuro do trabalho, conforme retratado por Zweig e Wolf (1996), contamina também o resto da nossa vida: se tivermos menos oportunidades de utilizar nossos talentos, vamos nos sentir não reconhecidos, pressionados pelas circunstâncias, e em perigo. Se nosso senso de identidade permanecer ligado a um emprego específico, se nosso valor pessoal for sinônimo de quanto ganhamos, então a auto-estima despenca, mesmo que trabalhemos mais horas. E vamos chegar em casa exauridos, envenenando nossa família com o ânimo pessimista ou reprimindo-o para a sombra por meio de drogas, álcool, comida, televisão ou internet. Esse tipo de vício em trabalho constitui um padrão de comportamento que não se relaciona com a alma, nem com o tempo da alma. Em vez de se alinhar com os ciclos naturais do corpo e das estações, em vez de experimentar períodos onde o tempo não existe, em um estado de fluxo criativo, achamos sempre que não temos tempo bastante; ele é um produto escasso, medido em segundos. O resultado disso é se esforçar ainda mais. Lutamos contra os ciclos orgânicos do descanso e o anseio natural pelo sonho e pelo devaneio. Em última análise, perdemos contato com nossos corpos e trabalhamos como máquinas sem alma.
A compulsão pelo trabalho faz com que algumas pessoas desenvolvam sintomas estranhos: fadiga crônica, insônia, impotência, dor de cabeça, depressão e vícios múltiplos. Para alguns, o vício do trabalho é uma tentativa de fugir da ansiedade que aparece se tiver que encarar o próprio vazio interno ou depressão. Assim, em vez de passarem pela ansiedade e mergulharem no submundo, retornam ao trabalho. Como o vício do álcool e das drogas, que camuflam as necessidades da alma recobrindo-as com uma euforia química, o vício do trabalho adiciona cimento à fortaleza da negação; nossa devoção míope à eficiência no trabalho fecha nossos olhos ao que estamos realmente fazendo (ZWEIG; WOLF, 1996) e nos distancia da nossa essência como ser, constituindo, dessa forma, um processo de alienação pessoal ao desempenharmos nosso papel de homo faber.
O Arquétipo do Herói no Inconsciente Coletivo
Um dos personagens constantemente presentes nos enredos mitológicos, independentemente da cultura ou período considerados, é o herói – uma figura tão central que por vezes as lendas heróicas se confundem com a própria definição de mitologia (HOPCKE, 1999).
Descrevendo a gênese dos heróis na mitologia grega, Burn (1990) relata que Zeus, o rei dos deuses, tinha criado cinco raças sucessivas de homens. A raça de Ouro tinha sido a primeira a habitar a Terra: essas pessoas afortunadas, tal como os deuses, tinham vivido uma existência sem necessidades de cuidados, com a terra produzindo alimentos para elas por sua própria conta. Elas foram sucedidas por uma raça inferior de Prata constituída de pessoas fracas de corpo e mente; por sua vez, os homens de Prata foram substituídos por outros de Bronze. Os homens de Bronze viveram principalmente para a guerra; eles foram grandes e terríveis guerreiros e, com o tempo, dizimaram-se uns aos outros.
Para substituí-los, Zeus criou uma nova e gloriosa geração, uma raça de heróis semelhantes aos deuses, chamados de semideuses – a raça anterior à nossa própria raça. Esses foram os homens cujas epopéias e personagens configuram a mitologia grega: eles dominaram monstros fabulosos, cruzaram o mar à busca de Helena, morreram na terra de Tróia ou avançaram sobre Tebas; após a sua morte, eles aproveitavam uma existência parecida com a dos deuses nas Ilhas dos Abençoados nos confins da Terra. A quinta e última raça de homens foi a raça de Ferro na qual o trabalho incessante só era aliviado através da morte.
Nobreza e glória eram fundamentais para o conceito grego de herói. Enquanto muitos heróis tiveram um pai ou mãe divinos todos foram de berço nobre; eles foram reis ou príncipes, governantes de países ou cidades, comandantes de exércitos, donos de riquezas fabulosas. Invariavelmente, eles eram bonitos, atléticos e corajosos.
O que mais chama a atenção era a obsessão dos heróis com a fama e a glória. Contudo, tanto os deuses quanto os heróis estavam sujeitos à autoridade mais elevada do destino. O destino podia ser revelado através dos oráculos, tal como o de Apollo em Delfos, ou através de agentes intermediários como profetas, sonhos e presságios. Frequentemente, porém, os heróis tinham somente um entendimento parcial do que lhes estava destinado, e sua inabilidade de reconhecer e aceitar o seu destino poderia levá-los à tragédia.
De acordo com Hopcke (1999), a mitologia universal foi a fonte das percepções de Jung sobre o inconsciente coletivo. Os Mitologemas – temas comuns que aparecem em lendas das mais diversas culturas – foram por Jung tidos como prova de que alguns elementos psíquicos são compartilhados pelos indivíduos em geral como parte de uma herança psíquica coletiva. Esses elementos psíquicos alojados no inconsciente coletivo são caracterizados pela psicologia junguiana como arquétipos – um a priori coletivo subjacente na psique de cada indivíduo (STEIN, 2006), uma matriz psíquica compartilhada que se evidencia através de comportamentos pessoais que expressam as experiências mais básicas e universais da humanidade, tais como: nascimento e morte, casamento e separação, maternidade e paternidade (GRINBERG, 2003).
Tendo esse enfoque, Jung concluiu que por ser um tema tão central nas lendas da mitologia universal – configurado por elementos narrativos que retratam seu nascimento divino, sua descida ao submundo, suas ações heróicas, suas derrotas, sua morte e seu renascimento -, a figura do herói constituiria um dos arquétipos da psique coletiva, sendo o mesmo considerado o arquétipo mais frequentemente relacionado com o desenvolvimento da consciência do ego (HOPCKE, 1999) ou com a constituição da personalidade do indivíduo (NEUMANN, 2006). Sendo uma forma principal de expressão do ego, o arquétipo do herói configura a expressão da vontade pessoal ou do esforço de poder (WHITMONT, 2006).
Dessa forma, o mito do herói seria na perspectiva junguiana uma projeção arquetípica cujo mitologema contemplaria um protagonista que, na visão de Müller (2017), tem coragem para vencer todas as adversidades, que se arrisca no desconhecido e no extraordinário e que sempre fascinou os homens de todas as culturas e de todas as épocas porque resume em si todos os desejos e a figura ideal de cada um de nós: nossa identificação com o herói se deve a nos reencontrarmos nos seus medos e sofrimentos, nos seus combates, vitórias e derrotas.
A Ascensão do Super-Herói Corporativo e a Alienação Pessoal
Encontrando-se subjugado pelos efeitos do vício do trabalho compulsivo – em especial a sensação de estar à deriva, sem direção ou esperança pela exacerbação da sua dimensão produtiva – o líder apresenta elevada vulnerabilidade a manipulações comportamentais que possibilitem a mitigação dessa situação de extremo desconforto psíquico descrita anteriormente como estágio inicial do processo de alienação pessoal.
Nessa condição, em que o ego do indivíduo se encontra com seus recursos próprios exauridos e contando com o respaldo da sociedade em geral para instigar ainda mais o desempenho deste na sua função produtiva como um valor social em si mesmo, a organização potencializa a inflação do ego do líder através do estímulo específico à constelação do seu arquétipo do herói – dinâmica que além de propiciar ao indivíduo uma falsa sensação de capacidade irrestrita de realização, provê uma carga fictícia de energia vital anestesiante do mal-estar psíquico em que este se encontra.
Protagonizando assim a persona do super-herói corporativo ao ser compelido a batalhar pelo sucesso pleno, o líder persegue uma sequência de epopéias no cenário organizacional, exacerbando cada vez mais a sua dimensão produtiva e dessa forma intensificando progressivamente o seu processo de alienação pessoal já deflagrado em estágio anterior pelo vício do trabalho compulsivo.
A Queda do Super-Herói Corporativo pela Inflação do Ego
Os gregos temiam sobremaneira o que denominavam de hybris – violência ou paixão voluptuosa que emergem do orgulho -, denotando transcendência aos limites humanos e representando a arrogância do homem que se apropria daquilo que pertence aos deuses (EDINGER, 1972). Jung ressalta que o conceito clássico de hybris (orgulho sobrepujante) aplica-se tanto para a fé contemporânea em nossa capacidade de produzir e realizar coisas quanto esse conceito se aplicava na Antiguidade e nos alerta para o fato de que identificar-se com o arquétipo do herói é flertar com o desastre, psicológica e literalmente falando (HOPCKE, 1999). A atualização conceitual de hybris para Whitmont (2006, p. 221) seria “a inflação do homem moderno que presume ser o senhor da natureza e não reconhece nenhum senhor acima de si mesmo”.
Discorrendo sobre as etapas de desenvolvimento da consciência, Stein (2006) relata que o indivíduo da modernidade tem o seu ego radicalmente inflado, o qual assume uma posição secreta de Deus Onipotente, constituindo um estado de coisas que para Jung seria extremamente perigoso desde que o ego inflado é incapaz de adaptar-se adequadamente ao meio ambiente, torna-se passível de cometer erros de julgamento monumentais e apresenta o potencial para a megalomania. Com esse enfoque, Whitmont (1972, p.233) adiciona que no estado de megalomania a pessoa perde a noção de suas verdadeiras limitações, sentindo-se compelida a fazer grandes coisas numa percepção de que nada parece impossível, o que caracteriza uma tendência geral de nossa época “quando o raciocínio consciente e a vontade assumiram uma posição de suprema autoridade”. A superestimação de si mesmo – sintoma de imaturidade da consciência – faz com que o ego se julgue independente e passe a desvalorizar, reprimir e mesmo negar o inconsciente (NEUMANN, 2006).
Nesse cenário, tipificado por Neumann (2006) como de exagerada expansão do sistema de consciência do ego, este último é facilmente levado a ceder à volúpia de poder da sombra e aos seus desejos de conquista do controle total do mundo (STEIN, 2006), situação que para Whitmont (2006) seria o resultado menos positivo do desenvolvimento do impulso de poder – a falsa impressão de que quanto mais êxito obtemos em controlar, mais achamos que podemos controlar tudo.
Através de uma análise abrangente, O’Neil (1991) constata que, em geral, indivíduos e organizações desfrutam de um período de êxito fulgurante que mais tarde se empana. O êxito, ao chegar, parece trazer em si uma ansiedade. Por essa razão, o êxito se transforma rapidamente de júbilo em preocupação, de alegria em fadiga crônica, em depressão ou numa crise pessoal de significado. Durante os períodos de êxito, vamo-nos inflando até alcançar o ponto da arrogância e, dessa maneira, deixamos de encontrar e de assimilar a sombra. Deixamos de ouvir e de observar a nós mesmos além das extravagâncias frenéticas do ego; fracassamos em nossas tarefas de aprendizado profundo; e nossa verdadeira identidade se distorce, se entorta e até se perde por completo. A sombra, esse conteúdo vital que negamos, controla a direção da nossa vida, nosso nível de energia e nossa biografia pessoal. Se continuarmos a enterrar essas partes de nós mesmos na escuridão, inevitavelmente pagaremos com a moeda da nossa alma.
Conclusão
Constata-se, assim, a condição de submissão de lideres organizacionais a uma sistemática perversa para a sua condição humana. De um lado, a demanda crescente por resultados que não consegue atender suscita no líder a extrapolação de seus esforços operativos, deflagrando o processo de alienação pessoal que torna a consciência deste estranha a si mesma e gera uma ausência de sentido para as coisas de sua vida. Do outro lado, o intenso estímulo do ambiente para o líder vivenciar a saga do mito organizacional contemporâneo do super-herói corporativo faz com que este se identifique com o arquétipo do herói, ateando a inflação do seu ego, dinâmicateandogo quea inflaça crescente que este ntada de realizaççao,
que gera no indivíduo um visão de si mesmo onipotente, onisciente e indefectível, açodando ainda mais intensamente a sua natureza de homo faber que, por sua vez, intensifica o processo de alienação pessoal já em operação.
A conscientização por parte das organizações de que o desempenho institucional está diretamente vinculado à plenitude dos seus líderes enquanto indivíduos, poderia incentivá-las a investir na preservação da condição psicofísica dos mesmos. Em última instância, a sociedade como um todo seria a grande beneficiária da melhoria da saúde integral dos lideres organizacionais, considerando que O SER ENERGIZA O FAZER.
Referências Bibliográficas
1) BURN, Lucilla. Greek myths. Great Britain: The Bath Press, 1990.
2) EDINGER, Edward F. Ego e arquétipo. São Paulo: Cultrix, 1972.
3) GRINBERG, Luis P. Jung – o homem criativo. 2. ed. São Paulo: FTD, 2003.
4) HOPCKE, Robert H. A guided tour of the collected works of C. G. Jung. Massachusetts: Shambhala Publications, 1999.
5) MÜLLER, Lutz. O herói: a verdadeira jornada do herói e o caminho da individuação. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 2017.
6) NEUMANN, Erich. História da origem da consciência. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
7) O’NEIL John R. O lado escuro do sucesso. In: ZWEIG, Connie; ABRAMS Jeremiah (Org.). Ao encontro da sombra: o potencial oculto do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix, 1991.
8) SANFORD, John. Healing and wholeness. New York: Paulist Press, 1977.
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10) STEIN, Murray. O mapa da alma. 5. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
11) WHITMONT, Edward C. A busca do símbolo: conceitos básicos de psicologia analítica. 7. ed. São Paulo: 2006..
12) ZWEIG, Connie; ABRAMS Jeremiah. A sombra da realização: o lado escuro do trabalho e do progresso. In: ZWEIG, Connie; ABRAMS Jeremiah (Org.). Ao encontro da sombra: o potencial oculto do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix, 1991.
13) ZWEIG Connie; WOLF, Steve. O jogo das sombras: iluminando o lado escuro da alma. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
ABSOLON MACEDO – Engenheiro, Especialista e Mestre em Administração, com Extensão em Gestão pela University of Waterloo/Canadá; Pós-graduações em Psicologia Geral e Analítica das Organizações, em Filosofia Contemporânea e em Sociologia do Trabalho e da Saúde Mental; Formação em Psicologia do Comportamento Social no CAPT-OKA/EUA, com Treinamento nos Institutos Junguianos de New York, Washington, Texas, Florida e Cleveland/EUA; Qualificação e Certificação para aplicação do MBTI – Tipos Psicológicos (Steps 1, 2 e 3) e do PMAI (Estrutura Arquetípica) pelo CAPT/EUA, e do EQ-2.0/EQ – 360 (Inteligência Emocional) pelo MHS/EUA; Consultor e Professor de Pós-Graduação de Filosofia do Comportamento Humano e de Liderança e Comportamento Organizacional.