O nascimento físico marca, concretamente, o início da nossa existência e o nascimento psíquico marca o início da jornada humana em busca da construção de si mesmo, na extensa empreitada da individuação. Nascendo para o mundo, atendendo ao chamado interno e externo para consumar a aventura da vida, nos defrontamos com o modelo arquetípico do herói cuja missão é impulsionar o ser em direção ao seu desenvolvimento, levando-o a romper barreiras e testar seus próprios limites (CAMPBELL, 2004).
Ao herói é atribuído o movimento diretivo e intencional da afirmação e autonomia, impondo os sacrifícios e rompimentos necessários a estruturas, comportamentos e crenças outrora úteis ao crescimento, mas que no decurso do tempo tornam-se vestes limitadas e limitadoras ao próprio desenvolvimento. É diante desse cenário psíquico de mudança e enfrentamento que emerge a figura universal do herói com o objetivo de instaurar e restaurar o movimento evolutivo natural da vida. Nesse sentido, todos nascemos para ser heróis, (Müller, 1992) para dar tensão e atenção ao impulso interior para o enfrentamento dos riscos do desconhecido de si mesmo, do mundo e da vida, criando o esteio e a reviravolta em busca da recriação de si, da identidade e da sua composição individual, familiar, social, profissional, cultural e espiritual.
Nos mitos antigos, nas sagas, nos contos de fada, na literatura e nos filmes nos deparamos com a figura mítica do herói, fundamental no imaginário de todos os povos, que representa o indivíduo que enfrenta seus medos arriscando-se ao novo desconhecido e protagoniza um papel de esperança que atende aos anseios de renovação e transformação da própria humanidade.
Algumas profissões carregam as projeções míticas da figura do herói, as equipes de resposta a emergência configuram-se num exemplo disso. É compreensível o que motiva a incidência dessa projeção coletiva vez que esses profissionais assumem um papel emblemático diante de situações limites, atuam em condições adversas em meio aos cenários desorganizados das emergências e desastres, confrontam o desconhecido, enfrentam o limite entre o medo e a coragem, amparam sobreviventes e desafiam o limiar sagrado entre a vida e a morte. Ao assumir missões de importância significativa se tornam responsáveis pelo enfrentamento de operações especiais, devendo cumprir sua tarefa com ação precisa e sob pressão do tempo. Por exercer certo fascínio no imaginário popular esses profissionais são investidos de afeto e carregam projeções de virtudes e valores humanitários do altruísmo, da solidariedade, da coragem e da esperança.
Müller (1992) ressalta que o fascínio exercido pela imago do herói ocorre porque ele personifica o nosso desejo (inconsciente) de idealização do ser humano que ao defender a nossa causa reforça nossa identificação com ele. Ao acompanhar a atuação real desses profissionais, nas vitórias e derrotas na luta pela sobrevivência, o indivíduo pode se reencontrar com seus medos e sofrimentos, mas também com a sua própria esperança. O herói, aqui representado pelas equipes de resposta a emergência, por um momento serve de modelo e cumpre não só uma tarefa social e humanitária importante, do resgate concreto de pessoas na escuridão dos escombros, mas também do resgate simbólico de valores humanitários depositados na sombra inconsciente da sociedade. A identificação com a imago do herói encoraja outros a, conscientemente, conservarem e disponibilizarem tais valores a luz das relações cotidianas e na busca pela transformação da própria sociedade.
No entanto, as projeções de idealização contidas no imaginário popular e direcionadas aos profissionais das equipes de emergência requisitam destes a tarefa psíquica de desidentificação das mesmas (Guggenbühl-Craig, 1988). Ser o portador destas projeções pode levar ao risco de conduzir o profissional a hybris – perigosos sentimentos de onipotência e invulnerabilidade – ou a identificar-se com a imagem arquetípica do salvador, acarretando na perda de contato com os próprios limites e com os limites de segurança da atuação profissional, fronteiras fundamentais na manutenção do contato com a própria vulnerabilidade. Outro ponto relevante deste ofício está na exposição cotidiana e repetida à perda e ao sofrimento humano, situações com potencial para gerar estresse e traumatização, tornando o profissional de emergência vulnerável ao impacto emocional da sua atuação. Neste ponto, a tarefa heróica deste profissional consiste em – diante da vulnerabilidade e fragilidade da vida que se propõe a resgatar – reconhecer o próprio limite, respeitar a própria fragilidade e conscientizar-se da própria vulnerabilidade para, assim, tornar-se íntegro na sua humanidade.
Retiradas as projeções, de ambos os lados, cada indivíduo pode resgatar e reconhecer o seu herói interior e responder ao chamado de responsabilizar-se pelo próprio caminho – dispensando salvadores – para experimentar, suportar e sobreviver a situações (de natureza traumática ou não), a fim de tornar-se mais capacitado e adaptado aos constantes desafios atualizados pelo viver, e assim disseminar ideais que amparem a vida na sua fragilidade, sustentem a vida na sua diversidade e propaguem o encantamento com a exuberância dessa mesma vida, pois como ressalta Campbell (2004) “todos compartilhamos da suprema provação” e da necessidade de realizar as tarefas existenciais da singular e arquetípica jornada heróica de cada um de nós. Somente mediante a aceitação dessa missão de vida que se pode assumir a verdadeira identidade do herói que somos cada um e, assim, nos tornarmos capazes de “transformar uma experiência traumática numa experiência de afirmação à vida” (LEVINE, 1999).
Referências Bibliográficas
Campbell, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 2004
Guggenbühl-Craig, Adolf. O abuso do poder na psicoterapia. São Paulo: Paulus, 1988
GUIMARÃES, Liliana A.M.; GRUBITS, Sonia (org.). Saúde Mental e Trabalho – vol. III. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004
Levine, Peter. O despertar do tigre: curando o trauma. São Paulo: Summus, 1999.
Müller, Lutz. O Herói. São Paulo: Cultrix, 1992
Organización Panamericana de la Salud – opAs. Protección de la salud mental en situaciones de desastres y emergencias (Manuales y Guias sobre Desastres Nº 1). Washington, D.C.: OPAS, 2002
Prieto, Claudia G. Aspectos Psicossociais em situações de emergência. Seminário de Psicologia aplicada a Saúde Ocupacional – Petrobras. São Paulo, mar/2008.
Solana Passos – Psicóloga clínica (UFBA), pós-graduada em Psicoterapia Analítica Junguiana (IJBA), Especialização em Neuropsicologia (UFBA), Formação em Somatic Experiencing – SE (Somatic Experiencing Trauma Institute) e abordagens psicocorporais (Bioenergética). Professora dos cursos de Psicotraumatologia e Arteterapia do Instituto Junguiano da Bahia.