Experiências Traumáticas E Traumatização
Os dados epidemiológicos nos trazem uma lamentável estatística, de que a maioria da população adulta está sujeita a vivenciar pelo menos um evento potencialmente traumático no curso de sua vida (Kessler et al., 1995). Entretanto eles também nos trazem um alento, ao identificar que uma maior porcentagem dos indivíduos, com o passar do tempo, têm uma remissão dos sintomas agudos peritraumáticos, e retornam ao fluxo normal de suas vidas (Agaibi & Wilson, 2005).
Estar exposto a um evento traumático não é, portanto, idêntico a ficar traumatizado, podendo existir marcantes diferenças individuais na maneira como se percebe, interpreta, reage e enfrenta eventos altamente aversivos.
Então trauma é…
Peter Levine, criador da Somatic Experiencing® (SE), uma intervenção somática para a cura e prevenção do estresse traumático, define a reação traumática como a resposta a um evento que aconteceu de forma demasiada rápida, intensa ou precoce, sobrepujando, assim, a capacidade do indivíduo para o enfrentamento ativo da situação.
O que acontece nestas situações é uma sobrecarga no sistema nervoso, que colapsa em sua possibilidade de “lutar ou fugir”, e entra instintivamente numa terceira resposta de sobrevivência, uma defesa passiva, adaptativa, denominada de imobilidade tônica ou dissociação.
O enfoque desta definição não reside no evento traumático em si – que pode ser grandioso, e gerar trauma em uns e não em outros, ou pode ser aparentemente insignificante, mas deixar marcas disfuncionais por toda uma vida; ela foca na resiliência ou não do organismo diante do evento, termo importado da física que significa a capacidade de um corpo suportar pressão sem se desorganizar.
Tept e outros desfechos traumáticos
Um alto índice de transtornos ansiosos distintos é observado em vítimas de trauma (como fobias específicas, ansiedade generalizada), transtorno obsessivo compulsivo, dependência química, bem como uma elevada taxa de transtornos de humor, como desfechos alternativos ou, muito frequentemente, comórbidos ao TEPT (Galea et al., 2002).
Não se sabe exatamente o que predispõe o organismo a cada desfecho, mas abuso na infância e trauma interpessoal crônico foram frequentemente associados ao risco de se desenvolver um amplo espectro de transtornos psiquiátricos (Dutra et al., 2002).
Renegociando o trauma
Há um apoio substancial das publicações científicas quanto à utilidade das intervenções psicoterápicas em sujeitos cujas reações traumáticas satisfazem os critérios para TEPT, mas alguns aspectos devem ser observados:
– Intervenções precoces, particularmente as que requisitam a narrativa dos elementos críticos do incidente estressor, logo após a exposição a um evento potencialmente traumático, não são apenas ineficazes, mas também podem agravar as reações traumáticas, interferindo na recuperação natural do processo.( Bonanno, Mancini, 2008)
-Abordagens psicoterápicas pautadas exclusivamente no discurso oral (debriefing psicológico) têm um alcance reduzido no tratamento dos efeitos traumáticos. (Mancini e Bonanno 2006).
O trauma, inscrito no sistema nervoso através da memória intrínseca (de procedimentos), somática, não é suficientemente acessado pela cognição: sob ameaça, o sistema de defesa autonômico, sub-cortical, é acionado, e a ação se torna instintiva, mobilizando todos os sistemas do corpo (endócrino, motor, circulatório, visceral…), na intenção de aumentar a competência pra sobreviver. Depois que o perigo passa, o indivíduo começa a dar um significado a tudo o que aconteceu, através do cérebro mamífero superior, o neo-córtex, que é apenas um instrumento que modela a matéria bruta da experiência vivida, mas não é em si a matéria prima do trauma, tendo portanto pouca eficácia em regularizar de novo o funcionamento bio-psíquico-social.
As abordagens exploradas no curso de Psicotraumatologia empregam a conscientização das sensações corporais para ajudar as pessoas na renegociação dos resíduos traumáticos, ao contrário de revivê-los. Com o apropriado direcionamento da consciência para a percepção corporal e instintiva, para os símbolos somáticos relegados ao inconsciente, os indivíduos são capazes de acessar seus recursos inatos-arquetípicos de imunidade ao trauma (autorregulação), permitindo que a alta ativação das respostas defensivas de sobrevivência seja liberada de forma gradual e segura. Quando estas energias são liberadas, as pessoas freqüentemente experimentam uma dramática redução, ou mesmo o desaparecimento, de seus sintomas traumáticos.
O modelo tem aplicações muito abrangentes para terapeutas corporais, médicos, psiquiatras, psicólogos, fonoaudiólogos, enfermeiros, entre outros, oferecendo ferramentas importantes para propiciar a resolução de traumas e intensificar a integração humana.
O que não mata, fortalece
Identificar o trauma psíquico, manejar e prevenir seus efeitos, é uma necessidade emergente nas clínicas diversas dos profissionais de saúde, uma vez que a exposição ao trauma é um evento mais ordinário que extraordinário.
Tão natural quanto a exposição ao trauma é a capacidade de lidar com ele; trauma, dor e desafio constituem a “máquina de evolução” da vida: o estímulo que preponderou, evolutivamente, para a transformação dos organismos unicelulares na complexidade e diversidade dos seres vivos que hoje testemunhamos.
Como espécie, o ser humano está biologicamente equipado para experimentar, suportar e sobreviver a traumas. A espécie aprendeu a se adaptar às situações ameaçadoras da vida, e ao fazê-lo, foi se tornando mais sábia, mais forte e mais competente para lidar com futuros episódios, uma sabedoria disponível dentro de cada um de nós, pra quem puder acessá-la.
Liana Netto, Psicóloga clínica, doutora em Medicina (UFBA), pós-graduada em Psicoterapia Analítica Junguiana pelo Instituto Junguiano da Bahia (1999). Ensina internacionalmente a Experiência Somática, explorando a conexão corpo/mente dentro do viés analítico.