UMA HISTÓRIA SOMBRIA

A sombra, para a psicologia junguiana, é um arquétipo e, como tal, é psicóide. Ou seja, ela transita tanto nas dimensões materiais quanto nas espirituais, sem pertencer a nenhuma delas, apesar de poder provocar grandes alterações por onde passa! Como todo arquétipo, ela não é absoluta, ou seja, não se prende a princípios morais e éticos do bem ou do mal, podendo destruir ou construir com a mesma naturalidade e intensidade.

A sombra é representante de grande parte do inconsciente humano e, por isso mesmo, incomoda as estruturas conscientes do ego, geralmente aprisionado em seus apegos e intimidado pela angústia existencial e pelo medo do novo. Com isso, egoicamente, geralmente tendemos a criar vários mecanismos de defesa para nos sentirmos protegidos e confortáveis diante desta realidade psíquica que é a sombra. Dentre eles, os mais comuns são a negação ou a repressão da sombra.

A negação da sombra é o mais praticado inconscientemente pelas pessoas. Geralmente, quem nega a sua sombra não consegue reconhecer sua incompletude e acredita ser uma pessoa, ou uma persona, absolutamente correta, beirando a perfeição, apesar de sempre estar assombrada por algum sentimento de mal estar, que rapidamente é justificado por algo do mundo externo.

Jung sempre afirmava que toda sombra negada, inevitavelmente será projetada. E as projeções geralmente provocam grandes movimentos de energia, despertando passionalidade em todas as partes envolvidas. Além disso, a sombra pode estar projetada de forma positiva ou negativa, ou seja, a pessoa pode ficar fascinada pelo outro tentado possuí-lo ou destruí-lo doentiamente – Amor ou ódio dependerá da influência que o conteúdo projetado provoque no projetor.

Na repressão, por sua vez, a pessoa já reconhece que existe dentro dela algumas potencialidades que lhe tiram da zona do conforto, desejos e pulsões não muito agradáveis, que podem provocar crescimento ou destruição, mas, de qualquer modo, produzem ansiedade e medo. Então, todo o conteúdo reprimido, que já ganhou algum espaço na consciência, pode virar sintoma de adoecimento e causar grandes estragos. Por isso Jung afirmava que a nossa sociedade, por ter “matado” os deuses, transformou-os em doenças. Porque esses deuses eram os representantes de toda potencialidade arquetípica da humanidade, revelando todos os excessos, aberrações, pulsões, instintos e sentimentos que povoam nosso inconsciente pessoal ou coletivo.

Os sintomas, por serem manifestações arquetípicas, também são psicóides e podem ser expressados em todo o espectro luminoso da consciência, transitando livremente do infravermelho ao ultravioleta, passando pelas polaridades da forma, do vazio, da matéria, da energia, do instinto e da espiritualidade. Além disso, os sintomas, devido suas características psicóides, invadem, penetram, infiltram e provocam alterações e transformações, independentemente das questões do tempo e do espaço.

Recentemente vivenciei as conseqüências de projeções sombrias que, na perspectiva de quem projetou, acabou me fazendo sair da identificação projetiva de um Narciso para a de um Zeus. O interessante, apesar de sofrido, é que toda essa manifestação foi e é inconsciente, e nós só conseguimos reconhecê-la depois que o conflito perdeu a potência, porque enquanto nós estamos sendo dominados pelos complexos nos tornamos simples marionetes dele. Mas, de qualquer modo, agora reconheço que no que diz respeito à minha relação com a pessoa que protagonizou essa história sombria, eu estava realmente agindo como um Narciso. Um indivíduo inerte e apático, encantado consigo mesmo, sem ter consciência disso, e que deixa os outros como ecos, desesperados e muitas vezes apaixonados pelo Narciso arrebatado com a sua própria imagem, sem saber que o reflexo espelhado no lago é ele mesmo.

Vale ressaltar que as pessoas identificadas com a imagem arquetípica de Eco sempre irão se encantar por Narcisos, constelando-os a qualquer preço. Pois, enquanto o Narciso fica entorpecido consigo mesmo Eco, desesperadamente, tenta chamar sua atenção, muitas vezes abandonando sua interioridade e deformando sua exterioridade, sua persona, usando e abusando de plásticas, moda, cosmética, cartas anônimas – construtivas ou destrutivas – entre outros artifícios para despertar seus Narcisos interiores, projetados em alguém do mundo externo.

Porém, como o psiquismo tem plasticidade, a sombra pode ser projetada de uma forma e acabar provocando reações diferentes das esperadas pelo projetor. E, neste caso específico, em que Narciso estava projetado em mim, ele não morreu afogado no seu encantamento e acabou acordando do seu torpor identificado com o arquétipo de Zeus, um deus vingativo, possessivo e dominador, que dispara seus raios na direção de qualquer pessoa que venha interferir no seu reino. Na realidade, Narciso, Eco, Zeus e muitos outros deuses e heróis míticos, são potencialidades arquetípicas existentes na dinâmica psíquica de qualquer ser humano, e que estão prontas para entrarem em ação, independente do conhecimento que temos delas. Essa é uma das grandes descobertas de Jung, ao nos apresentar o inconsciente coletivo. Da mesma forma que a melhor receita para evitarmos que o arquétipo do Narciso seja constelado em nós é dada por Jesus ao dizer: se eu não lavar os seus pés, vocês não terão parte comigo – Ou seja, quem quiser ser o mestre seja o serviçal de todos!

Então, para não sofrermos tanto ou sermos pegos de surpresa, como aconteceu comigo, precisamos constantemente praticar o exercício da humildade de reconhecer nossa sombra, para lidarmos melhor com a sombra alheia, e, na medida do possível, tentar integrar esses conteúdos sombrios na nossa consciência, alargando-a e ampliando nossa visão de mundo. Isso é o que os junguianos chamam de processo de individuação, o grande desafio proposto pelo Self, que geralmente é representado pela imagem de deus. O seja, para conhecermos nossos transtornos e patologias psíquicas devemos encarar nossa sombra e, só quem pode se confrontar com ela é que estará capacitado para lidar e aceitar a do outro, obviamente sem correr o risco de ser abusado ou desrespeitado durante seu caminho de servidão e dependência rumo à realização existencial.

Mesmo assim, vale lembrar que é natural tropeçarmos com adversários quando lutamos pelos nossos ideais, nos deparando com inimizades, opositores, agressores ou detratores. Porém, o homem firme não os ouve e nem se detém para contrapô-los. Ele seguirá sua rota, invencível em sua fé, inabalável em sua ação, porque quem marcha em direção à luz não perde tempo em se defender dos medos ou à contra-atracar seus adversários. Com isso, muitos aspectos da sombra acabam perdendo potencia e autonomia e podem ser integrados à luz da consciência, ampliando-a e nos deixando mais próximos do daimon e do nosso processo de individuação! Essa é a sabedoria do guerreiro pacífico, que para muitas pessoas pode ser confundido com um “banana” ou um narciso encantado consigo mesmo!

Porém, Narciso, Eco ou Zeus, sejam eles quais forem as potencialidades arquetípicas, muitas vezes identificadas com as antigas divindades do inconsciente coletivo, sempre surgem como fardos pesados e sofridos para serem incorporados no dia a dia. Por isso, precisamos permitir que eles venham à nossa consciência dentro de limites estreitos, como numa sessão psicoterapêutica ou em algum ritual sagrado. Porque, como eles não estão mortos, evitamos que eles se convertam em patologias. Só assim poderemos integrar a sombra com a persona, fazendo com que o ego fique rendido ao processo de individuação, sem corrermos o risco da hýbris, a inflação do ego, onde ultrapassamos os limites humanos e ficamos a mercê da nêmese, do castigo enantiodrômico que repara os excessos. Por isso, o maior conforto para a alma é a métris ou o metron, a justa medida do ser humano, que é simultaneamente simples, complexo, criativo, único, maravilhoso e patético.

Com isso, devemos aprender a Ser simplesmente humanos, embora pareça enfadonho e sem graça – é justamente a graça divina dada a nós. Ser um deus é muito penoso! Só assim poderemos encontrar encanto, entusiasmo e romantismo no cotidiano ordinário, superando as crises criativa e evolutivamente.

São Paulo, Março de 2008

Waldemar Magaldi Filho. Psicólogo, Analista Junguiano, especialista em Psicologia Junguiana, Psicossomática e Homeopatia. Mestre e doutor em Ciências da Religião. Autor do livro: “Dinheiro, Saúde e Sagrado, coordenador dos cursos de especialização em Psicologia Junguiana, Psicossomática, DAC – Dependências, abusos e compulsões, Arteterapia e Expressões Criativas e Formação Transdisciplinar em Educação e Saúde Espiritual do IJEP em parceria com a FACIS. Prof. convidado do IJBA.wmagaldi@gmail.com