Por Carlos São Paulo
Uma semente, lançada ao solo fértil, é vencida pelo “instinto” ou pela lei natural de ter que morrer para ressurgir em uma nova forma de vida. Assim, uma amante driblou o desejo de poder e, como uma semente, entregou-se a Eros para viver uma nova forma de vida em que o amor é alimentado pela paixão. Essa é a história dos amantes Oxum e Xangô, que li no maravilhoso livro Mitologia dos Orixás, de Reginaldo Prandi.
Para desfrutarmos de um raro prazer ao buscar entender a mente humana, observamos os mitos cavalgando no referencial teórico da psicologia de C. G. Jung. Esses mitos revelam as tramas que regem as nossas vidas contidas no inconsciente coletivo e que podem ser vividas por qualquer um de nós. Os mitos dos orixás originalmente fazem parte dos poemas dos babalaôs, aqueles que nos conduzem pelos segredos oraculares.
Um certo dia, Xangô chameja na vida de Oxum. Ela era rica, dengosa e vaidosa. Ela colocou em seu leito vários amantes, que viveram com ela um prazer incomum. Até que, naquela aldeia, chegou um rapaz de virilidade flamejante que deixou Oxum fogosa. Era Xangô. Ele era um alabê, chefe dos tocadores de atabaques, que rejeitou deitar-se com Oxum.
Ao ritmo de um atabaque, com toques rápidos de características guerreiras, Oxum desmanchava-se em felicidade numa relação sexual com Xangô. Oxum implorava por seu amor, mas ele só desdenhava dela. Tempos depois, Xangô ficou pobre e, envergonhado, foi viver longe do som dos atabaques. Ele tomou Oxum como amante, e ela o supriu na busca de conforto e prazeres. Para isso, desfez-se de todos os seus pertences até lhe restar apenas um vestido branco. Todos os dias ela lavava sua única veste e, de tanto lavá-la no rio, a roupa, que era branca, ficou amarela. Desde esse dia, Xangô amou verdadeiramente a Oxum.
Como a negativa das antigas fotografias, um indivíduo, ao desenvolver a identidade do eu, também desenvolve simultaneamente o seu oposto, que é o não eu. A esse não eu, já que não é consciente, Jung denominou Alma. Com esse raciocínio, um ser é tão viril quanto a sua alma é feminina e vice-versa. É essa alma que será projetada num outro ser para se conseguir uma relação amorosa.
No mito, Xangô só foi capaz de amar Oxum quando ela se despojou da sua antiga vida ou de tudo aquilo que não pertencia à sua alma. Numa visão literal, é como se a posição masculina fosse a de não se conformar com o feminino que se mostra com mais poderes que ele. Não olhamos para os mitos, ou mesmo nossos sonhos, de forma literal, e sim procurando entender o simbólico.
Desde o século XX, as mulheres conquistaram mudanças significativas e puderam assumir espaços nunca antes imaginados. Deixaram de viver dedicadas a seus maridos para conquistarem uma participação social igualitária. Surgiu o termo “empoderamento feminino” – um neologismo do educador Paulo Freire que tem origem no termo inglês “empowerment” – para reger um movimento em que homens e mulheres tornam-se igualmente livres sem carregar estereótipos do papel de gênero. Apesar de todas essas mudanças, não podemos deixar de considerar a influência desse passado na sociedade atual, principalmente quando se trata de relacionamentos amorosos.
Enquanto antes a flor rolava sendo carregada pelo fluxo da correnteza devido a sua leveza, agora, como quem adquiriu raízes, essa flor divide e compete com o fluxo da correnteza para não ser levada como antes. Isso é o que ocorre com a relação amorosa entre homens e mulheres. Em nosso mito, Xangô só pôde amar Oxum quando as vestes dela amarelaram.
Na alquimia, amarelar é quando a alma compartilha e divide. Talvez como no outono, quando as árvores amarelam suas folhas para despojar-se delas e esperar o inverno para, assim, renascerem na primavera. A luz do sol se apresenta habitualmente amarela e, após várias reflexões, chega o pôr-do-sol e ela torna-se vermelha. A esse vermelho, os alquimistas chamavam a fase da rubedo, que é a última fase para se atingir a pedra filosofal. A rubedo é também o casamento do sol com a lua, ou do céu com a terra. Para Jung, a Alquimia representa a projeção em laboratório de um drama ao mesmo tempo cósmico e psicológico.
Talvez aqui o feminino de Xangô necessitasse de uma Oxum de jeito agradável que criasse uma segurança emocional para ele dentro da relação. Em uma reflexão, podemos pensar que a qualidade que fez Oxum ter tanto poder com seu processo profissional também estabeleceu uma competição dentro de seus relacionamentos, uma vez que, para chegar a essa condição, ela precisava ser agressiva, decisiva, competitiva e de opinião fixa. O momento do amarelecimento permitiu a Xangô sentir que suas opiniões também contavam.
Quando Xangô se confrontar com uma Oxum, dessas que precisam de um homem, mas agem como se não precisassem, ele se sentirá inútil e haverá sexo sem existir amor. Onde o deus Phobos, deus do poder, permanece; o deus Eros, do amor, desaparece. O mito nos convida a refletir se a tendência dominadora que Oxum precisava para crescer em sua carreira não está sendo trazida para dentro da relação.
Homens que buscam mulheres para se relacionar são incapazes de amar quando o acolhimento é substituído por um estado competitivo sobre quem domina a relação. O sagrado é a alteridade. Precisamos desenvolver a capacidade de se colocar no lugar do outro, aprender com as diferenças e respeitar o indivíduo como esse outro de si mesmo.
Carlos São Paulo – médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana.
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