Autoanálise da injúria cardíaca*

Recentemente, após completar 60 anos, recebi de presente um infarto agudo do miocárdio, vivenciei uma dor inimaginável, recebi dois stents, fui socorrido por excelentes profissionais da saúde, senti a crueldade do maldito protocolo médico e, apesar do risco iminente da morte, saí deste sintoma de adoecimento rapidamente e, aparentemente, sem grandes sequelas ou, usando o termo médico, sem muita injúria cardíaca. O mais impactante, fora a surpresa de me perceber enfartando, sem pertencer ao grupo de risco e com exames recentes todos dentro dos parâmetros saudáveis, foram as manifestações de melhoras que recebi. Pude rever amigos que há muito não via e agradeço imensamente todas as vibrações, recebi miríades de conselhos e escutei tentativas de justificar a ocorrência, explicando o inexplicável! Obviamente, como analista junguiano, sei que em cada conselho que recebi, por mais bem-intencionado que seja, existe a projeção sombria do desejo de realização, deste mesmo conselho, na vida de quem estava me aconselhando. Assim como, acompanhando diariamente várias histórias de vida, há mais de 35 anos, posso afirmar que nossa existência é misteriosa, que a natureza é soberana e que só iremos saber o caminho de realização do inconsciente, na medida que aprendemos a abrir mão da ilusão do controle e do poder, entregando-nos para ele, aceitando sua numinosidade nos momentos de êxtase e de espanto!

De fato, a experiência dolorosa é de quase morte. Assim como foi “mágica” a sensação de alívio e bem-estar imediatos após o implante das benditas “molas”! Depois disso vem a expectativa de saber se ficaram sequelas cardíacas e ou outras obstruções.  Não quero desqualificar nem negar minha expressão de adoecimento, apesar de que o diagnóstico de mecanismo de negação é muito usado nos psicologismos. Sei que esta foi mais uma oportunidade de autoconhecimento e evolução que o Self me brindou, e agradeço! De imediato, descobri não dar conta com o excesso de mi, mi, mis, hipocondrias, conselhos do senso comum de mudança de atitude e hábitos, novos comportamentos supercuidadosos, um monte de falas estereotipadas e reducionistas, sugestão de programas de restabelecimento, tentativa de me enquadrar em algum tipo de tabela estatística, justificativas oraculares e proféticas lançando mão das mais variadas mancias, somado a todo protocolo desta atual medicina desumanizada e desumanizante, baseada nas evidencias e estatísticas. Aliás, como já disse, estatisticamente eu nem estava enquadrado nesta história, por ainda não ter atingido os índices do grupo de risco em meu último check-up, não ser fumante, e viver com absoluta qualidade, com prazer, entusiasmo, alegria e comprometimento. Meu dia a dia se enquadra no que chamamos de eutresse, que é o oposto do distresse, gerador de doenças. Por isso, posso imaginar que minha recuperação também não pode ser protocolar!

Resolvi fazer essa autoanálise do sintoma de adoecimento IAM que me visitou, porque em 2011, depois de receber um e-mail de um colega, que é psiquiatra e se imagina analista junguiano, que comemorava a notícia do câncer de laringe do então presidente Luiz Inácio da Silva. Fiquei indignado com o ato desumano e com a incapacidade do colega e de muitas outras pessoas de perceberem o quanto estavam projetando suas sombras no personagem Lula e fiz um texto, que é facilmente encontrado na internet, intitulado: “LIÇÕES DE PSICOSSOMÁTICA: CÂNCER DE LARINGE DO LULA, O GRITO DO NÃO DITO OU DO MAL DITO!” Como sempre digo, é muito mais fácil falar do outro do que de nós mesmos. Por isso, se tive a ousadia de empreender uma pequena análise, à luz da psicossomática junguiana, do adoecimento do Lula, e de muitas outras pessoas que me procuram, não poderei deixar de fazer o mesmo comigo.

Por conta disso, minha primeira reflexão começa com a palavra infarto ou enfarte, ambas palavras podem ser utilizadas para indicar uma lesão causada pela parada da circulação arterial, bem como qualquer tipo de obstrução ou bloqueio. Como sempre trabalho na perspectiva compensatória da polaridade luz e sombra – consciência e inconsciente, o oposto do infarto é a fartura. E esta é a realidade do meu existir, numa absoluta fartura, e sempre fui grato a ela, consciente que ela existe, em parte, graças ao resultado da meritocracia, devido a minha dedicação, estudos, comprometimento, muito trabalho e entusiasmo, mas sei que a maior parte desta fatura, é por conta do mero acaso, ou do misterioso destino transcendental, de eu não ter nascido num contexto sócio, econômico e familiar de exclusão e disfuncionalidades, como é o caso da grande maioria da população.

Há muitos anos tenho abundancia de relacionamentos, saúde, cultura, dinheiro, clientes, alunos, lazer e tudo que se possa imaginar de qualidade de vida e o que a sociedade adjetiva como sucesso, sem luxo, porque sempre acreditei que a luxúria é sinônimo de desumanidade. E sem euforia, porque a vida também me proporcionou muitas situações conflituosas para forjar meu desenvolvimento evolutivo. Aprendi compreender e acolher cada frustração, traição, tristeza e dor diante das temáticas de dependências, abusos e compulsões, vivenciadas, ativa ou passivamente, por meus clientes e no meu convívio familiar. Isso também me deu fartura de conhecimentos e estudos. Então, será que essa falta de sangue, que injuriou meu coração, veio para me tirar dessa zona de conforto? Me fazer lembrar dos infartos sociais e humanitários, onde a grande maioria das pessoas não estariam aqui fazendo esse texto sete dias após o IAM, porque não possuem, e neste caso é literal, acesso a tudo que possuo? Se for esse o caso, surge a primeira hipótese de que esse infarto veio para me levar para o ativismo social, me tirando apenas do discurso social democrático, que até a pouco chamava de ideologia política de esquerda, até esse nosso infeliz momento onde esquerda e direita se corromperam no capitalismo consumista da descartabilidade e desigualdade. Mas como e onde praticar esse ativismo?

Essas lições de vida foram me capacitando e despertando, cada vez mais, a vontade de socializar, ensinar cuidar e tratar esse sintoma de adoecimento que, infelizmente, surge como doença sócio, cultural e espiritual, destruindo milhões de jovens e suas respectivas famílias. Há mais de quinze anos desejo criar uma clínica escola para tratar as dependências, abusos e compulsões, com ênfase para a dependência química. Imagino construir algo absolutamente integrativo, transdisciplinar e inovador, levando em consideração todos os aspectos biológicos, cognitivos, afetivos, psicológicos, familiares, laborais, políticos, sociais e espirituais. Idealizo um programa de tratamento, que seguirá o modelo da espiral evolutiva da humanidade, capacitando o interno a refletir criticamente todas as etapas do desenvolvimento da personalidade, visando a ressignificação da vida. Além da compreensão e respeito aos complexos, que estavam autônomos, da superação dos traumas e aceitação de si mesmo. Através de vivencias profundas, imagino promover uma espécie de “reimprint”, possibilitando o afloramento do sentido e do significado existencial do interno, despertando amor e servir como meta de vida. Sei que esse é um empreendimento grandioso, custoso e sofrido, mas também sei que esse pode ser mais um chamado do Self, com implicação social e política, para a realização do meu inconsciente.

Sempre afirmei que qualquer partido político nos faz partido, e como busco incessantemente a integridade, nunca me vinculei a nenhum deles! Mas, apesar de nunca ter me filiado a qualquer partido, sou político de esquerda, no sentido de lutar pela redistribuição da renda, da inclusão social e de exigir que não seja tratado os desiguais de forma igual.  Por isso, apesar de tudo, as práticas de auxílios e assistência, bolsas e qualquer tipo de benefício social, numa sociedade tão desigual como a nossa, sempre é bem-vinda! O problema é o mal-uso destas políticas sociais, ora para favorecimento de governos populistas, ora para mais corrupção e desvio do dinheiro. Precisamos exigir ética e legalidade! Mas como exigir governança, ética e compliance, neste momento onde a grande maioria dos políticos, independentemente do partido, estão corrompidos e de rabo prezo, uns com os outros – prostituídos e prostituintes, incluindo uma grande parcela de funcionários públicos do primeiro escalão e da sociedade, onde o interesse pessoal destrói a coisa pública, ou república. Mas, se esse IAM veio para me levar ao ativismo social e político, como começar a agir de fato?

Alguns podem me chamar de narcisista, apesar de que Narciso não vê o outro, e acho que esse não é o meu caso, mas até pode ser que meu narcisismo também seja atípico e único, como tudo que me acompanha. Reafirmo que doença é bênção para ampliação simbólica e morte, libertação! Se não morri, preciso simbolizar e não ficar à mercê desse monte de literalizações do senso comum, reducionismos e até acusações, como se existisse uma culpa e, o pior, que o que eu amo fazer, que é servir, pode ser o vilão! A experiência de quase morte foi libertadora! Naquele momento percebi que estava pleno e pronto. Não tive o menor medo e sabia que, se acontecesse, iria em paz, sem dívidas ou dúvidas e com a certeza de que estava cumprindo o meu propósito, com sentido e significado, e isso é uma benção. Porém, naquele momento lembrei de uma entrevista do Chico Anysio, onde ele aos 80 anos disse que não tinha medo, mas pena de morrer! E esse foi o sentimento que me atravessou, entremeado com uma dor insuportável, de que era uma pena eu morrer, apesar do conforto do alívio da dor caustica e corrosiva, com tantas coisas para criar, produzir e servir.

Nossa medicina, adotando o modelo americano, usa o termo injúria para descrever um coração que ficou ofendido e machucado após um IAM. Esta palavra também nos remete a muitas dimensões simbólicas, como ofender a honra ou injustiça. Porque o Self injuriou meu coração? Será que foi para eu sair deste mutismo, que parece coletivo, e começar a gritar, denunciar, mobilizar? O interessante é que estamos vendo o descumprimento das juras, ou juramentos éticos, em todas as instancias, políticos servindo apenas suas vidas privadas, servidores públicos servindo-se do público, humanos abusando de humanos e todos nós juntos destruindo o planeta!

Comecei a perceber que quem estava gritando era a minha alma, que usou simbolicamente meu coração como instrumento! Injuriou meu coração, quem sabe, para que eu tomasse pé de tantas injúrias que deixo de ver e sentir, pelo comodismo e até descrença nesta sociedade que parece estar cega, muda e surda diante deste descalabro político e social, achando engraçado cantar: “que tiro foi esse?”. Certamente meu coração está injuriado por conta de eu desejar e idealizar utopicamente relações fraternas e amorosas em todas as instâncias, com igualdade, apesar das diferenças, e liberdade, obviamente respeitando a liberdade dos demais, e cada vez mais ver esse desejo impossível de ser realizado. Essa injúria me faz sofrer ao ter que lidar com tanta desigualdade, indiferença e egoísmo, na maior parte das vezes camuflados nas personas que escondem a humanidade e a sombra, com caras, bocas, roupas, saltos, joias, bolsas, arrogância intelectual e credencias acadêmicas, enfim selfies sorridentes, personas probas, apesar da permissividade promíscua e antiética espantosa, geralmente presente nos próprios lares, claro que sem a presença da deusa Héstia, aquecendo a lareira.

A vida depende da morte, é frágil e, ao mesmo tempo, exuberante, imprevisível e imperativa. Esta experiência que vivenciei, nesta condição única, complexa e criativa, desencadeou pensamentos, sentimentos, sensações e intuições, que compartilho agora, obviamente sob a minha lente interpretativa. Apesar de que, na dinâmica junguiana, deveria ser analítica, simbólica e amplificativa! Por isso, ao invés de rotulagens, diagnósticos, acusações ou interpretações rasas, precisamos de ampliação de forma integral, holística e amorosa, levando em consideração nossas (minha e do meu entorno relacional) personas, sombras e complexos.

Minha produção sempre dependeu dos afetos, aquilo que me afeta, e esse IAM, um dos grandes. Aprendi desde cedo agradecer as oportunidades que surgem, mesmo as dolorosas e tristes. Esta experiência acentuou a percepção de que o que compreendia como Eu é a resultante de muitos fragmentos, cada qual com potencialidade arquetípica e, por isso mesmo, não é só meu, mas coletiva e universal. Por isso chamamos o Ego de complexo. Sempre me percebi fragmentado, mas isso nunca me assustou, na verdade, me encantava saber da multiplicidade e multidiversidade do meu Ser.  Tem parte completamente oposta a outra, num amplo espectro desde o santo até o demônio, do mais egoísta ao mais altruísta. Na maioria das vezes consegui estimular e permitir um bom debate entre elas, para impedir que alguma delas fique autônoma e literal, me mantendo em valores e atitudes unilaterais e monotemáticas. Meus solilóquios são verdadeiras contendas, com brigas, desavenças, dissidências e parcerias. Felizmente o consenso harmonioso sempre acabou surgindo transcendentalmente. Jung afirmou que a sizígia ou união dos opostos estimula a função transcendente, e ele viveu isso intensamente. Por isso, com idade avançada pode afirmar que sua vida foi a história de um inconsciente que se realizou, dando espaço para sus vários eus, ou personalidades. Sei da potencialidade delas: uma é capaz de matar, outras estuprar, trair, cometer suicídio, agir como idiota e pôr tudo a perder, entre outras. O mais interessante é que, dependendo do complexo dominante, do fragmento da personalidade que fica mais atuante ou da divindade, arquetipicamente falando, que está atravessando minha alma, a energia psíquica, sinergicamente, sintoniza com o corpo, adequando-o para que o complexo/persona dominante se mantenha no controle e, neste caso, justifica-se infartos, tendinites, psoríases, obesidade, vícios, entre todas as manifestações simbólicas do corpo, na forma de sintomas.

Após o trauma, como já estou firme, forte, ávido e muito agradecido e entusiasmado com a experiência do IAM, que parece ter vindo para me lembrar que eu estava muito acomodado, na minha zona de conforto, e que ainda tenho outras missões nesta vida, precisando abrir outras portas para praticar o meu servir, que minha existência, ao longo destes 60 anos de vida, foram me capacitando, por meio de muitas outras experiências dolorosas que tive. A dificuldade agora é ter que lidar com a escolha das portas que precisarei fechar, porque todas elas estão muito prósperas e prazerosas. Ou simplesmente, se terei que aceitar que sou arrogante, pueril e pretencioso em querer empreender qualquer coisa nesta altura do campeonato, e abrir mão do que está dando certo. A questão é que, neste caso, covarde e herói, louco e sábio, se interpenetram, confundindo-me ainda mais.

Mas, como nada é por acaso e acredito na existência de um Poder Superior, espero conseguir fazer as escolhas certas e enfrentar o desafio que o fio do destino, guiado pela força do Self através das Moiras, forjou na minha alma uma trama bem resistente para o porvir. Sempre amando amar e servindo para Ser! Agora estou mais consciente de que a falta de prontidão em atender ao chamado do Self é diretamente proporcional ao grau de punição que o ego sofre. Só não sei se esse chamado é para abrir novas portas – fechando algumas que estão abertas, me aprofundar mais nas que já estão abertas ou aprender a viver hedonista e egoistamente, desfrutando de toda riqueza acumulada. Pelo sim ou pelo não, agora vou tentar aquietar e me cuidar, sentir e analisar meus sonhos e os sinais sincronísticos que vão surgindo e aguardar a cena dos próximos capítulos, que a vida e a natureza, que são incontroláveis, irão manifestar em mim e em toda a humanidade!

Janeiro de 2018

*WALDEMAR MAGALDI FILHO. Psicólogo, especialista em Psicologia Junguiana, Psicossomática e Homeopatia. Mestre e doutor em Ciências da Religião. Autor do livro: “Dinheiro, Saúde e Sagrado”, Ed. Eleva Cultural, coordenador dos cursos de especialização em Psicologia Junguiana, Psicossomática, Arteterapia e Expressões Criativas do IJEP (www.ijep.com.br), oferecidos em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. Professor convidado do IJBA (www.ijba.com.br).