A experiência com o diferente pode acionar mecanismos de fuga e/ou rejeição que vão além da consciência e nos leva a viver a ilusão de um mundo dividido em perfeição e imperfeição.
O premiado livro da americana R. J. Palacio surgiu de uma experiência pessoal, vivida quando ela e seus filhos estavam numa sorveteria e um deles, o caçula de 3 anos, assustou-se com a deformidade facial de uma garotinha e começou a chorar. Com esse impacto, Palacio escreveu a obra Extraordinário com uma energia suficiente para mobilizar seus leitores, fazendo a história tornar-se um best-seller, já convertido em filme.
A obra conta a história de um menino de dez anos, August Auggie, que, escolhido pelo jogo das combinações genéticas, nasceu com rosto sem a harmonia e as proporções das formas, deixando-o em oposição ao belo. Ele sofria por não conseguir ser, para os outros, um garoto comum.
A educação escolar foi dada pela mãe até os dez anos, quando resolveram colocá-lo numa escola sob seus protestos. Este aceitou depois de um acordo de poder desistir se assim desejasse. A mãe superprotetora quase não dava conta da existência da irmã de August. Assim, Via (Olivia) sofria resignada, mas conseguia amar o irmão.
Com sua aparência “extraordinária”, August faz amigos, sofre bullying e até consegue descobrir uma forma de estar no mundo como um garoto comum, apesar de seus pais lhes dizerem que ele é “extraordinário”. O desejo de Auggie era de que todos os dias fossem Halloween, pois assim “poderíamos ficar mascarados o tempo todo e, então, andaríamos por ai e conheceríamos as pessoas antes de saber como elas são sem máscaras.”
Na psicologia de C. G. Jung, cada sujeito precisa se relacionar com o mundo externo e objetivo e se adaptar a ele; mas também existe um mundo interno e subjetivo, repleto de experiências do ser humano e de nossas próprias vivências guardadas, com diversas tonalidades afetivas, que também exigem que possamos nos relacionar e nos adaptar a ele. Nesse modelo de psicologia, a estrutura da relação com o mundo externo foi chamada de “Persona”, que é um modo de imaginarmos como somos vistos pelos outros. A imaginação de Auggie, sobre nos conhecer com máscaras e depois nos sentirmos em contato com a verdade, evitaria o preconceito para permitir que pudéssemos ser conhecidos em nossa essência.
Nem sempre tomamos consciência da existência da máscara que usamos e de como nos importamos com ela. Na psicologia de Jung, a estrutura da relação para com o mundo mais profundo de nossa natureza, o mundo interior, foi chamada de “Alma”. E são esses conteúdos existentes na “Alma” que, ao se manifestarem, sofrem a ação da consciência, separando-os em opostos irreconciliáveis.
No mundo da “Alma”, tudo está unido. É nele que nossos ancestrais sentiram que Deus criou os céus, a Terra e contemplou o universo como o todo belo. Também faz parte desse todo Lúcifer, o demônio, uma obra de sua criação. Na “Alma” não há separação entre o perfeito e o imperfeito, existe o ser. É ao passar pela consciência que esse ser pode se transformar no belo, com as suas formas harmônicas e proporcionais, ou em sua oposição, a feiura.
Monstros e Velhos Sábios, como o Jedi (personagem de Guerra nas Estrelas), são opostos em suas funções. Enquanto o primeiro mostra feiura em suas ações puramente instintivas, o Velho Sábio, com sua sabedoria, orienta os menos experientes de vida. Embora sejam comuns em suas aparências disformes, o primeiro mostra a feiura do ser, enquanto o segundo, a beleza. Olhe agora para aquela velhinha que você tanto ama! O que acontece com sua “feiura”? Dilui-se na beleza do amor e as polaridades desmancham-se na “Alma”.
Umberto Eco, em sua obra “A história da feiura”, relata-nos que na antiguidade acreditava-se que as criaturas vistas por fora como feias eram prenúncio de infortúnio. Com a evolução da consciência, no renascimento, os seres monstruosos passaram a ser objetos de observação científica em vez de profetas das tragédias.
No mundo moderno, os consultórios médicos tornaram-se uma arena de luta contra o feio no corpo. Até os genitais, como disse Freud, são vistos como feios, mas exercem excitação e desejo ou fascínio. Mesmo assim, alguns ginecologistas, urologistas e até proctologistas dedicam-se a trabalhar na estética desses órgãos.
Na mitologia grega, Hefesto, o deus rejeitado pela feiura, torna-se o artesão que constrói as mais belas obras do Olimpo. Notamos aqui a feiura como estímulo intelectual e pulsão artística para criar o belo. Hefesto casa-se com Afrodite, deusa da beleza. Podemos perceber aqui o sentido de “casar-se” como uma relação entre o feio e o belo para tornar-se um. Portanto, o sentimento da “Persona”, em ser visto como o feio, ao casar-se com a “Alma”, que sente em si a beleza interior, faz-nos conseguir um todo em equilíbrio.
O menino August Auggie, diante dos colegas que o isolam, convive com um conceito sobre si mesmo, o de alguém que assombra os outros. Com o amor manifestado por sua família, nutre seu valor interior e aos poucos é notado por sua capacidade carismática, até adquirir uma nova percepção do outro sobre si e conseguir fazer os amigos enxergarem um outro tipo de beleza. É o casamento da beleza do fazer com a beleza do ser.
Auggie são todas as pessoas que ficam mergulhadas na escuridão de um eu que imagina sua imagem mostrada ao mundo em colisão com o ideal de uma sociedade. O sentimento de assombrar o outro, ser motivo de risos, acontece até essas pessoas encontrarem a capacidade de amar a si mesmas para ser possível serem vistas em sua essência.
Carlos São Paulo – médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana.
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