“Envelhecer é de longe a tarefa mais difícil que já tive de enfrentar”. Essa é a frase de muitos dos meus amigos, de alguns alunos, que confessam isso num momento furtivo em que o assunto vem à tona, de alguns pacientes, de alguns casos de supervisão. É algo que pipoca aqui e ali nas redes sociais o tempo todo, e, confesso, assunto que tem me mobilizado muito quando penso no meu futuro próximo. É, para mim, uma questão de dois lados que, apesar de parecerem separados, talvez sejam mais relacionados do que imaginamos: o social e o espiritual.
Enfim, a metanoia, como sabemos, requer de nós uma capacidade de olharmos para dentro e para fora, tentando retomar nosso caminho de autenticidade no mundo. Mas como fazer isso isolado, sem recursos econômicos, numa sociedade que te descarta tão logo seu poder de produção e consumo diminui? E exatamente ao mesmo tempo em que temos de buscar a maior coragem para enfrentar os desafios próprios que a diminuição da performance física nos traz?
Acho de um enorme cinismo essas propagandas e programas da mídia que apresentam o envelhecimento saudável e performático (e o cenário sempre são academias pagas – e bem pagas) postulando que esse estado de bem estar infinito é possível para todos e que só depende do desejo e esforço de cada um. É claro que a decisão interior de estar bem, de cuidar de si mesmo com amor, de ser honesto com suas próprias limitações faz parte do reconhecimento das mudanças da vida que a metanoia traz. Mas não me passa despercebido o cinismo de que todo esse discurso coloca exclusivamente na mão das soluções individuais a salvação.
Em momento algum fala-se da falta de políticas sociais, da condição de pobreza extrema da maior parte da população, que impede o acesso a condições básicas de qualidade de vida. E sobretudo não se aponta para a força e a libertação possíveis por meio das ações comunitárias na busca de soluções concretas, do poder que brota das mãos que se juntam.
Sobre esse aspecto social do fenômeno, tenho pensado que precisamos, como sociedade, entender que não há saída para a solidão e o isolamento do velho fora de uma reforma comunitária. Por isso ando defendendo tanto a ideia das moradias coletivas, programadas e realizadas enquanto as pessoas ainda têm condições e autonomia para decidir sobre sua velhice. Se continuarmos num modelo de vida individualista e narcisista, tal como implantado pela sociedade do consumo, não haverá saída para a velhice, a não ser o isolamento e o ostracismo.
É preciso que cada um pense em unir-se às suas afinidades e criar moradias coletivas, unindo recursos para que todos possam desfrutar da companhia dos amigos e de uma estrutura de acolhimento aceitável. Não tenho medo de envelhecer numa casa de repouso, mas a ideia de estar cercada de estranhos com os quais não terei nenhuma afinidade me assusta. Não penso que seja uma desgraça ficar velho e não ter família por perto, mas acho uma desgraça estar cercado de gente estranha com a qual não se partilhe nenhuma paixão, com a qual não se possa ter uma conversa com o mínimo de base comum de sentidos. Está na hora de entendermos que a família não é mais o único lugar dos velhos (ao menos para uma multidão deles), temos de inventar esse novo lugar para nós, e temos de começar a fazer isso enquanto ainda temos energia, lucidez e autonomia para tal.
A comunidade renascerá não por uma visão romântica de que, no fundo, somos todos bons indígenas que se esqueceram de sua natureza. Ela renascerá como o único lugar digno para uma velhice plena de sentido, em busca de uma morte que faça jus a uma vida bem vivida. E quem sabe então os velhos poderão voltar ao seu lugar de origem e serem uma voz sábia a se levantar em meio à insanidade geral, apontando caminhos.
E é então que entra em cena a outra dimensão do fenômeno: como está nossa espiritualidade, nosso processo de individuação, enquanto envelhecemos? Sim, porque não há sabedoria possível para realizarmos projetos coletivos de amor sem estarmos no nosso próprio caminho, autenticamente.
No prólogo de Memórias, Sonhos e Reflexões, Jung, em seus 83 anos, afirma sobre a vida que “nunca se sabe como as coisas acontecem”, e toda sua vida e obra foi um testemunho de que, aconteçam como acontecerem, a melhor resposta que podemos dar à vida sempre é nossa autenticidade.
Observo pessoas que se aproximam da velhice sem se questionarem acerca de terem ou não vivido suas vidas verdadeiramente, sem terem tido coragem de realizar aspirações legítimas da alma, tendo fugido sistematicamente de um auto exame honesto acerca de suas escolhas, de suas derrotas e de suas vitórias, na maioria das vezes culpando as contingências da vida por terem se desviado tanto assim do caminho em que repousavam seus corações. E se aproximam da velhice de um modo muito ruim, rígidos e em crescente estado de desistência.
Envelhecer assim é fatal, e a morte que virá não fará sentido, como provavelmente todo o resto que veio antes também não fez.
Envelhecer no mundo de hoje, tão repleto de apelos, em que a extimidade é a palavra de ordem das redes sociais digitais, não torna esse caminhar para si mesmo mais fácil. E a ausência de um lugar de dignidade para o velho em nossa sociedade pode tornar a coisa toda bem trágica.
Apenas esse movimento para dentro e para o outro, em busca da individuação, de um lado, e de uma comunidade de amor, por outro, pode nos devolver à grandeza da vida, dure ela o quanto durar, pois quando se está próximo dos portais, o tempo já não importa.
Malena Segura Contrera