Por Santina Rodrigues de Oliveira
Buscando contribuir para oferecer referências teóricas para o uso de recursos expressivos na arteterapia, me detenho nesse breve artigo na técnica da pintura que pode ser usada de diferentes formas no setting arteterapêutico.
Essa técnica é tão comum à arteterapia que pode-se dizer que praticamente se confunde com ela, especialmente pelas possibilidades expressivas que comporta. A atividade de lançar as tintas sobre diferentes suportes mobiliza todo o corpo, em especial a respiração e a parte superior do corpo. E, com a mesma intensidade, mobiliza a fantasia, em função das cores, luzes, sombras e formas que vão surgindo a partir dos gestos que as mãos vão fazendo sobre a tela, tecido ou papel.
Numa aula recente com uma das turmas de arteterapia do IJEP, o grupo se ocupou de uma produção coletiva que permitiu refletir sobre as diferenças entre a pintura feita sobre o solo (quando todos permanecem sentados e se debruçam sobre uma parte específica do suporte disponível), em contraposição à pintura feita sobre a parede (quando todos se levantam e podem transitar mais livremente para pintar em diferentes partes do suporte).
Nessa atividade havia um único tema proposto inicialmente ao grupo, que deveria ser trabalhado com apenas um tipo de tinta (guache), ou seja, havia um direcionamento para que o grupo pudesse se organizar e se articular na realização da tarefa. Para além do desafio de pintar o suporte oferecido (com 5 metros de comprimento), havia outro, que era o de permanecer em silêncio do começo ao fim da atividade, de modo que se abrissem para um diálogo silencioso que exigiria concentração, percepção do gesto do outro e cuidado com o próprio gesto que estaria dialongado e interferindo no do colega.
O processo foi estimulante, pois o movimento dos braços e mãos ocupados com as tintas se intensificou na medida em que estando de pé, os participantes podiam se locomover com mais agilidade diante do painel que estava a sua frente. Pintar de pé permite olhar de frente o que esta se constelando na pintura, distanciar-se das imagens, percebê-las em perspectivas diferentes do que ocorre quando a pessoa se encontra presa e olhando sobre o papel que se encontra no solo.
A diferença, então, entre a pintura feita no chão, com todos sentados e voltados para uma parte única do papel, como se fosse exclusividade sua, para a pintura feita sobre a parede, com todos de pé, transitando entre si, é que se inaugurou por assim dizer uma espécie de dança dos corpos, da respiração, dos olhares e das imagens que foram se delineando e dialogando entre si sobre o papel. A liberdade oferecida aos corpos e ao olhar dos participantes quando ficaram de pé estimulou um movimento entre as pessoas que se refletiu na liberdade com que puderam interferir, completar ou sobrepor partes da pintura já feitas por outros colegas.
Nesse exercício, aprofundou-se a intimidade entre os participantes do grupo que se ocupavam da tarefa, de maneira que ao final, efetivamente podia-se ver e sentir que se tratava de uma pintura coletiva, e não de uma produção feita por indivíduos que pintavam em grupo . Ao final, num exercício contemplativo, todos puderam falar da experiência vivida, dos aspectos observados com as diferentes posturas corporais durante a pintura, e da relação com os colegas e com as imagens. Ressaltaram a necessidade do respeito, e por que não dizer de um certo desrespeito para pintar sobre uma imagem, ou parte dela, evidenciado suas partes, cores, contornos do que já havia sido registrado pelo colega.
É possível dizer que a pintura do painel promoveu ainda mais proximidade entre os alunos, na medida em que os incentivou a se conectar por meio do gesto silencioso, e não da palavra que muitas vezes distrai e distancia as pessoas da atividade que esta sendo proposta, tantos em termos objetivos como subjetivos. Permanecer em silencio, conforme o relato do grupo, foi o maior dos desafios, pois pintar um tema comum buscando a integração com o que o colega estava criando, sem poder explicar em voz alta o que se pretendia, foi desafiador para aprimorar o cuidado e atenção ao outro e a si mesmo.
A natureza anímica das cores.
“As cores são paixões e ações da luz… Na verdade, luz e cores se relacionam perfeitamente, embora devamos pensá-las como pertencendo à natureza em seu todo: é ela inteira que assim quer se revelar ao sentido da visão. (GOETHE, Doutrina das Cores)
A pintura sobre diferentes tipos e tamanhos de suporte é usada na arteterapia como um dos recursos mais fundamentais para o paciente se deparar com imagens da alma. Elas podem se apresentar mais sombrias ou delineadas, numa pintura abstrata ou figurativa, mobilizando emoções, ideias e afetos, especialmente pelas tonalidades de cores usadas na produção. Dentre os vários aspectos constituintes da pintura como técnica, elegi para uma reflexão arteterapêutica, as cores como ponto de aprofundamento nesse texto, considerando sua abrangência emocional, pois ao pintar, o paciente “escolhe” inconscientemente as cores que melhor apresentam suas dores, sintomas, anseios e fantasias.
Nas célebres palavras de Kandinsky (1996, p. 76):A cor é um meio para se exercer influência direta sobre a alma. A cor é a tecla. O olho é o martelo. A alma é o piano de inúmeras cordas. Quanto ao artista, é a mão que, com a ajuda desta ou daquela tecla, obtém da alma a “vibração certa”
Essa “vibração certa” não seria fruto apenas do domínio da técnica, já que esse pintor/autor pensa as cores a partir de uma premissa muito singular e que podemos aproximar daquela também apresentada por Gaston Bachelard , quando este discorre sobre a poética dos elementos.
Para Kandinsky (1996), tanto as formas como as cores possuiriam o que ele chama de um “conteúdo intrínseco” próprio, uma capacidade de agir como estímulo psicológico. Desse modo, um triângulo suscitaria movimentos “espirituais” diferentes de um círculo. Assim como as formas, as cores também teriam um conteúdo “semântico” particular. Por fim, o referido conteúdo semântico de uma forma pode variar segundo a cor a que ela está ligada, inaugurando um cruzamento de sentidos’complementares de cada cor quando conjugada com uma determinada forma.
Ao se referir ao azul, por exemplo, ele explica: Quanto mais profundo é o azul, mais ele atrai o homem para o infinito, mais acorda nele a nostalgia da pureza e, enfim, do supra-sensorial. É a cor do céu, tal como a imaginamos ao ouvir o som da palavra céu.
O azul é a cor tipicamente celeste. (KANDINSKY apud TASCHEN, p. 74) Ao se referir ao amarelo, como contraponto, ele explica “O amarelo… inquieta o homem, pica-o, irrita-o e mostra o caráter da força expressa na cor, força que atua finalmente sobre a alma de uma forma insolente e importuna.” (KANDINSKY apud TASCHEN, p. 87).
Trabalhando com um segundo par de opostos, ele contrapõe o vermelho e o negro,explicando que “… o vermelho é ‘efervescência e ardor, ‘força imensa consciente do seu objetivo (KANDINSKY apud TASCHEN, p. 127). Por sua vez” O negro tem um som interior de vazio desprovido de possibilidades, um vazio morto, como se o Sol fosse extinto.” (KANDINSKY apud TASCHEN, p. 87).
É interessante notar o modo poético e psicológico como o autor propõe o significado das cores, indicando a partir de traços idiossincráticos da própria cor seu significado simbólico. Nessa pesquisa poética sobre o espiritual na arte, Kandinsky nos oferece uma possibilidade de compreensão das cores que abrange diferentes aspectos de cada uma delas, como o “movimento da cor”, seu “simbolismo”, sua “temperatura”, seu “som musical”, e possivelmente o mais significativo de todos, seu “estado de espirito”. Notem que ele está atribuindo tais qualidades às cores, alçando-as quase a uma condição de sujeitos, especialmente quando especula sobre seu “estado de espírito”. Vejamos como o autor/pintor aplica esses critérios de análise em relação ao
primeiro par de cores por ele proposto .
Amarelo: Movimento: o amarelo possui um movimento irradiante e excêntrico (ou seja, ex-centrico, para fora do centro), representando um salto para além de todo limite, nele vemos a dispersão da força em torno de si mesma. Simbolismo: uma cor essencialmente material e terrestre, fascinante e extravagante, explosão de energia, desperdício das forças. Temperatura: a cor mais quente de todas. Som Musical: associada a sons extremos agudos. Estado de Espírito: a cor da loucura e do delírio, uma explosão emocional, um acesso de fúria. Uma cor que possui uma
forte intensidade e atormenta o homem.
Seguindo os mesmos critérios de análise, desta vez em relação ao azul.
Azul: Movimento: o azul possui um movimento de distanciamento do homemfísico, possui um movimento concêntrico (con-centrico, ou seja, em direção ao centro). Simbolismo: uma cor imaterial, capaz de despertar no ser humano um profundo desejo de pureza e de contato com o divino. Temperatura: é considerada a cor mais fria de todas. Som Musical: sons graves. Estado de Espírito: o azul traz consigo a paz e a calma, mas também detecta um estado de tristeza à medida que se escurece na direção do preto.
Desse modo, é importante que o arteterapeuta amplie seu repertório para compreender o significado das cores que aparecem, faltam ou dominam as pinturas de seus pacientes, escapando de uma tradução simplista que pode ser encontrada em livros que definem literal e estreitamente o sentido das cores. Na leitura de Kandinsky, temos um rico caminho para mergulhar nos significados das cores a partir dos elementos anímicos das próprias cores, e a partir delas, propor um diálogo com o que provocam na alma do paciente. Evidentemente, esses significados precisam ser conjugados com a perspectiva cultural do indivíduo, pois as cores, como sabemos, congregam significados advindos da experiência pessoal e coletiva.
Por fim, a arteterapia não se resume a um trabalho terapêutico meramente expressivo, ela requer, também, dialogo e relação com as imagens que surgem na pintura e em outras atividades . Além disso, ela pede que o individuo se perceba em relação à experiência vivida, no caso da pintura, às cores “escolhidas” inconscientemente, às imagens que se apresentaram por meio do material. É nesse diálogo simbólico que se promove aprofundamento psicológico em relação às imagens, de modo que seu potencial efetivamente mobiliza o individuo não apenas pela catarse de ideias e emoções, mas simultaneamente na relação que se estabelece com o que surgiu na experiência, já que segundo Goethe “Cada olhar envolve uma observação, cada observação uma reflexão, cada reflexão uma síntese: ao olharmos atentamente para o mundo já estamos teorizando. (GOETHE, Doutrina das Cores)
Santina Rodrigues de Oliveira
Psicóloga e supervisora clínica, professora do IJEP.
Mestre pelo IPUSP. Membro do grupo Himma (Estudos em Psicologia Imaginal) e da
IAJS (Intl. Asociation for Jungian Studies.
santina.rodrigues.oliveira@gmail.com