“ Conta a lenda que dormia uma princesa encantada a quem só despertaria um infante, que viria do além do muro da estrada. Ele tinha que, tentado, vencer o mal e o bem, antes que, já libertado, deixasse o caminho errado por o que à princesa vem. A princesa adormecida, se espera, dormindo espera. Sonha em morte a sua vida, e orna-lhe a fronte esquecida, verde, uma grinalda de hera. Longe o infante, esforçado, sem saber que intuito tem, rompe o caminho fadado. Ele dela é ignorado. Ela para ele é ninguém. Mas cada um cumpre o destino – ela dormindo encantada, ele buscando-a sem tino pelo processo divino que faz existir a estrada. E, se bem que seja obscuro tudo pela estrada fora, e falso, ele vem seguro, e, vencendo estrada e muro, chega onde em sono ela mora. E, ainda tonto do que houvera, à cabeça, em maresia, ergue a mão , e encontra hera, e vê que ele mesmo era a princesa que dormia.” (Fernando Pessoa).
Podemos dizer que esse poema fala de uma princesa adormecida (Psique) que encontra-se no interior de todos nós. Ela representa a alma, âmago do nosso ser, personalidade interna, que faz relação com os processos psíquicos inconscientes. Jung diz que se estamos à procura da alma, devemos buscar antes as imagens de nossas fantasias, pois é assim que psique se apresenta diretamente.
A tarefa de Psique na nossa vida é conhecer-se e criar-se a si mesma. Mas para isso precisa do infante Eros, o amor. Psique é mortal e sofre porque espera. sem ter consciência do que espera. Mas não acontece nada, enquanto não chega o amor (Eros). Eros é o daimon, um poder divino residente que nos energiza com extraordinário entusiasmo, acendendo a nossa chama criativa. Através dele, nos tornamos imortais. Há uma imagem do coração dentro de cada pessoa. É o que revelamos quando nos apaixonamos perdidamente, pois então estamos abertos para exibir nosso verdadeiro ser, deixando entrever o infante (Eros) que nos habita.
O mito de que trata esse poema é chamado de Eros e Psique e fala sobre um caso de amor. Está associado a todos os amores e processos criativos humanos, inclusive, o próprio processo de individuação (um caso de amor que temos com nós mesmos). Ele nos oferece uma espécie de anatomia da criatividade, a partir do olhar da psicologia junguiana. Vamos observá-lo melhor?
No início do mito, quando Psique cumpre o seu destino, aceitando o chamado (corresponde aquele momento em que surge uma inspiração ou insight dentro de nós, saindo da zona de conforto. É acorrentada em uma pedra no alto de uma montanha, para ser entregue ao casamento com um terrível monstro. Aqui ocorre as bodas de morte, a defloração, o rapto, um processo de morte e renascimento. Psique aceita o sacrifício necessário para realizar a sua jornada.
O que precisamos sacrificar para evoluir e crescer?
A criatividade exige CORAGEM para sairmos da nossa zona de conforto e aceitarmos o chamado heroico. Isso implica em submissão a um processo psíquico de morte-renascimento. O arquétipo do aventureiro precisa desafiar o conformista. Semear é também despir-se do velho e abrir-se para o novo, lidando com o medo do desconhecido.
Existe um arquétipo dentro de nós, a Testemunha, que é capaz de nos ajudar a confrontar duas subpersonalidades sombrias, que funcionam como sabotadores da criatividade: o Tirano e a Vítima. Precisamos de coragem para acessá-la.
É preciso criar espaços receptivos para a mudança. É preciso criar confiança. Calar a voz do julgamento de si e dos outros é permitir que aflorem possibilidades que ninguém antes havia vislumbrado. As sementes da transformação encontram-se no ato de ver nossa realidade com mais clareza, sem preconceitos nem julgamentos.
A inspiração ( o daimon, Eros) sempre se esforçará ao máximo para trabalhar com você, mas, se você não estiver pronto ou disponível, ela poderá de fato optar por deixá-lo e procurar outro colaborador humano.
Encontro ( inspiração e celebração) – experiência de pico. Afrodite faz com que que Eros lance uma flecha em Psiquê para que ela se apaixone pelo seu futuro esposo. No entanto, acontece um “acidente”. Eros, ao ver Psique, se distrai e acidentalmente acaba espetando seu próprio dedo com uma de suas flechas e então é ele, o deus do amor, quem acaba se apaixonando por Psiquê.
Tomado pela paixão, Eros pede a Zéfiro, o Vento Oeste, que leve sua amada para o Vale do Paraíso. Psiquê que seria, até então, entregue à terrível criatura agora se encontra num paraíso e diante da situação aceita-a maravilhada, principalmente por ter sido deixada numa linda sala com música, comida e servos. Ali no Paraíso a diversão e a beleza eram presentes em todos os dias e a situação atual era muito mais favorável do que a anterior quando estava sendo entregue à morte. Psiquê se encanta com o Paraíso. Mas condições foram impostas à Psiquê para que ela pudesse continuar morando nesse lugar: nunca poderia olhar para seu marido quando este a procurasse todas as noites e ela também nunca poderia lhe fazer qualquer pergunta sobre seus atos.
O paraíso ingênuo de Eros corresponde à fase de encantamento que aparece no início de todo enamoramento criativo. Psique e Eros vivem a sua relação, porém cegos de paixão. É uma fase de celebração criativa, quando estamos nas nuvens, apaixonados. É um estado criativo de não saber e não ver (obscuridade representado pela cegueira) onde nos entregamos aos deleites dos sentimentos e da intuição (psique só pode sentir e ouvir, ou seja, não questionar) e aprendemos a desaprender.
Mas como é difícil nos entregar à experiência de ficar nesse estado! Precisamos abrir mão dos julgamentos e preconceitos. O “poder largar” exige mais coragem do que ficar no controle, enxergando. Por sua vez, não sabemos como a vida se modifica quando largamos.
Psique, mortal, precisa de Eros para se imortalizar, conduzindo seu amor humano até um nível mais elevado de amor espiritual. Já Eros, por ser imortal, precisa de Psique para encarnar num relacionamento humano. É importante vivermos a magia do encanto desse encontro. No entanto, o encantamento pode nos aprisionar no castelo da ingenuidade.
O momento do Vale do paraíso representa a inflação, onde somos perfeitos e belos. O arquétipo da Estrelha brilhante dentro de nós precisa aprender a humildade com o Artista.
Dúvidas – saída do pico – início da entrada no vale. No meio do encantamento, aparecem as irmãs invejosas de Psique (um aspecto positivo da dúvida, que provoca o crescimento através da reflexão). O próprio Eros está atuando dentro de nós, pois como um demônio em ação, incita a curiosidade para o conhecimento. É o momento em que, de repente, no auge do encantamento (de um trabalho criativo ou de qualquer encontro amoroso) as dúvidas aparecem. Começamos a questionar, surgindo várias interrogações na nossa mente.
É quando Psique acende uma lamparina enxergando Eros e é abandonada por ele, caindo em profunda depressão. A lamparina acesa corresponde à busca do conhecimento (movimento análogo ao que Adão e Eva fizeram no Eden ao comerem a maçã da árvore do conhecimento do bem e do mal, sendo por esse motivo expulsos do paraíso). É a saída da inocência da inflação, quando transcendemos os opostos e caminhamos para uma dialética onde se encontra o novo (terceiro ainda não vivido).
A partir daqui começa a entrada no vale: A intuição possui as nossas potencialidades futuras. No entanto, temos que tornar as nossas visões reais por meio do trabalho. É necessário dispormos de tempo, prioridades, escolhas cuidadosas e que refletem trabalho pesado para que as possibilidades se concretizem. Thomas Edison já dizia sabiamente que talento é 1% de inspiração e 99% de transpiração.
É essa transpiração que vai acontecer com Psique (e conosco) para que ocorra o casamento da mortal com Eros. Só assim pode nascer a voluptuosidade, filho de um viver psíquico erótico. Essa experiência criativa é inefável, vai além do que podemos expressar em palavras. É quando nos imortalizamos através da Obra (ufa, conseguimos parir).
Entrar no vale é uma outra história (e que veremos em outro artigo). Boa viagem!
Ermelinda Ganem Fernandes
Doutora e Mestra em Engenharia e Gestão do Conhecimento (UFSC/PPEGC). Médica e psicoterapeuta junguiana. Coordena o curso de especialização em Processo Criativo e Facilitação de Grupos (abordagem junguiana) no IJBA.