Muitas vezes ouvimos o ditado de que a dor é inevitável e o sofrimento é opcional, dando a conotação de que podemos nos livrar ou evitar o sofrimento. Porque nossa cultura, cada vez mais materialista, nega constantemente a dimensão anímica e espiritual, entendendo que a dor, por ser física, é inevitável, mas para ela temos analgésicos. Porém, o sofrimento, como vem da alma, é melhor que não apareça porque, na realidade, quando ele vem nada pode alivia-lo de fato, devido ao fato de que sua origem é a angústia pela falta de sentido e significado para a vida. Mesmo assim, esta frase parece que coloca o indivíduo saudável como aquele que consegue negar ou evitar o sofrimento.
Isso me deixa muito incomodado, porque precisamos sofrer, na condição do sujeito que vivencia as experiências e os afetos, para evoluirmos, indo ao encontro da nossa dimensão sombria para acessarmos nossa alma e nosso daimon, a centelha divina que nos impulsiona para a salvação, iluminação ou, junguianamente falando, a individuação. Porém, como estamos condicionados a ir apenas às direções do que está na frente, acima e pra fora, cultuando as deusas razão e matéria, em busca do prazer quantitativo e efêmero, o sofrimento virou patologia e, na maioria das vezes, diagnosticado como depressão. Aprendemos a negar a angústia e, com isso, a criatividade genuína. Valorizamos as anestesias, os analgésicos, os ansiolíticos e os antidepressivos, assim não fazemos a descida aos infernos, imergindo na profundeza da alma, apesar do sofrimento do ego, para cumprir a verdadeira jornada do herói na direção do si mesmo. E, para cumprir essa jornada, tão temível na contemporaneidade, é necessário irmos para trás, para baixo e para dentro.
Aprender a sabedoria da alma, com o propósito de atingir nossa meta de união com o absoluto, é quase um crime. Porque neste estado teremos impulsos de amar e servir e isso é ruim para o sistema alienante de consumo, acúmulo, dívidas e trabalho sem sentido e significado. Aprendemos a conter as emoções e, com isso, a ficarmos cada vez mais neuróticos, consumindo toda sorte de substâncias psicoativas com intuito de aliviar a angústia e esperar a morte chegar. Para romper esse ciclo é necessária uma crise que produza a metanóia. A mudança de paradigmas, possibilitando o desapego e o cuidado, com resgate da intimidade e do amor, como instrumentos arquétipos em desuso na atualidade.
O mal está associado a escândalos – que em grego é skandalon, significando obstáculos e empecilhos – suscitando crimes, golpes, latrocínios, homicídios, suicídios, guerras, discórdias, prostituição, traições, invejas, enfim toda sorte de tragédia, angústia e caos que constituem a frágil e aflitiva condição humana. A pedra de tropeço, que significa manquejar, designa o obstáculo que repele para atrair, atrai para repelir. Não podemos topar com essa pedra uma primeira vez sem voltar sempre a topar com ela, pois o acidente inicial e depois os seguintes a tornam sempre mais fascinantes. Da mesma forma, o pecado – hamartia – também contextualiza a falta e a perda do alvo, representado pelo daimon ou chamado vocacional da existência. Por isso, o sofrimento do sacrificado pode representar um processo de lapidação ou de queda, que significa, simbolicamente, a tomada de consciência e o aperfeiçoamento, ele também pode permitir o restabelecimento da ordem.
A Crise é a base de toda a evolução humana. Apesar dela gerar sentimentos de violência e de violação, ela é a possibilidade de tomada de consciência e evolução criativa. Porque a crise, de maneira violenta, tira o indivíduo de sua rotina profana, onde a vida é vivida sem significado e sem sentido, podendo levá-lo, pela necessidade de superá-la, a uma dimensão sagrada e de sabedoria. É por meio da superação de situações de conflito que o sagrado imanente e inconsciente pode tornar-se transcendente e consciente. Mas, para isso, é necessário termos a consciência do caminho e do daimon, evitando assim o trágico, que equivale a trafegar sem destino, o pecado, a perda do alvo ou do propósito, o desastre, a desconexão com os astros e, consequentemente, o escândalo, ou tropêço. Apesar de que todas essas ocorrências traumáticas e dramáticas possibilitam a tomada de consciência e o realinhamento com o processo de individuação, proposto por C. G. Jung.
Compreendo que todas as manifestações mórbidas, incluindo o trágico e o desastroso, nas esferas psíquicas, físicas, familiares, laborais, sociais, espirituais ou ecológicas podem ser grandes possibilidades de tomada de consciência. Porque estamos vivendo numa época de dissociação, onde todos os sistemas estão ruindo. Mas isso, a meu ver, é o prenúncio da mudança de paradigma para este atual sistema egoísta, consumista e cumulativo. Por isso que fenômenos climáticos, biológicos e geológicos estão cada vez mais exuberantes e violentos e, como nada é por acaso, tudo isso pode ser compreendido como o estímulo para a queda e consequente tomada de consciência da humanidade.
É interessante refletirmos e ponderarmos que a atitude de não violência, a ahimsa, adotada por Mahatma Gandhi (1869-1948), na realidade foi muito violenta, porque violou o atual modelo da Lei de Talião, do olho por olho e dente por dente. Sua atitude foi de extrema violência contra a competição por meio da violência física e produziu enorme violência psíquica em seus oponentes, a ponto de possibilitar o surgimento da metanóia, ou seja, a mudança de atitude diante da brutalidade da invasão territorialista e do abuso de poder, eliminando os condicionamentos e automatismos alienantes, por dar oportunidade para a tomada de consciência, em busca de sentido e significado para as ações e para a vida.
Neste sentido, posso afirmar que o sábio é aquele indivíduo capacitado para produzir crises, no sentido de estimular tanto o autocentrismo quanto o altruísmo, possibilitando mortes simbólicas e mudanças de crenças na direção da expansão do autoconhecimento. Por isso, o sábio faz com que o tempo de Kronos inclua o tempo de Kairós.
Desta forma, o sábio não pode ser sempre tolerante, porque ao tolerar o intolerante ele pode retroalimentá-lo. Mas, ao invés de agir da mesma forma que o doentio, ele provoca a crise da enantiodromia, com serenidade para reconhecer que, em alguns momentos, o não agir é uma forma de agir, assim como o não falar também é uma espécie de fala, que pode dizer muito mais do que milhares de palavras ou ações. Utilizando esses instrumentos de forma consciente e consequente, sempre alinhados com sua intenção de produzir desconforto e transformação evolutiva do outro, valendo-se heroicamente de Areté e Timé, que lhe conferem honra, coragem e valor.
Para mim, o maior sentido da vida é o de servir, pois quem não vive para servir não serve para viver. Sendo que esse servir deve estar voltado para a humanidade, no dinamismo da teoria da dádiva que compreende o dar, o receber e o retribuir. Por que, neste sentido, dar é sinônimo de receber, ou seja, aquele que consegue se sentir recebendo quando está dando, além de estar numa atitude natural de liderança, terá autoridade e maturidade para servir a vida e, consequentemente, ao sagrado, ao invés de apenas se contentar, infelizmente como a maioria das pessoas, em fazer uso transitório da vida e do sagrado. Por isso, somente a troca de graça é que tem graça! Assim, por mais que a humanidade tente negar, parece que estamos na emergência de várias crises, da política ao meio ambiente, da ética aos valores espirituais, para que suas soluções possam produzir a superação e o advento de um novo paradigma.
Reiterando que sofrer é inevitável, mas a dor pode, talvez, ser superada. Transformada. Mas o sofrimento? O padecimento? As paixões da alma? Esses são próprios da vida. Simplesmente, porque não controlamos os outros, e muito menos a nós mesmos! Na realidade, não temos muito o que fazer com o outro de nós mesmos, representado por nossa sombra e complexos, que possuem, na maioria das vezes, autonomia, independência e até ascensão sobre nosso Ego que, de forma defensiva, acaba projetando esses elementos internos nos objetos externos. Isso faz com que o outro externo também seja transformando em objeto, na mesma medida dê que vamos negando nossa subjetividade, desanimando e virando objetos inertes, solitários e finitos. E, muitas e inúmeras vezes, esses outros de nós mesmos projetados em nosso entorno relacional, nos atingem gerando dor, assim como nós mesmos criamos situações de autoflagelamento físico e ou psíquico, para alimentar o complexo vitimário ou simplesmente pelo prazer da autopunição em expiar o sentimento de culpa.
Como não controlamos os outros (internos e externos, reais ou projetados), e os riscos da convivência e dos envolvimentos inevitáveis, embora, cada vez mais nos enganemos que o envolvimento não só é possível de ser evitado, como deve sê-lo. Tentamos evitá-lo, justamente, para, assim, numa tentativa insana de manter os relacionamentos sob controle, sejamos capazes de manter, também sob controle, o sofrimento. Daí que surge a dimensão do simulacro e das relações sintéticas, eliminando qualquer resquício da sabedoria.
Despeço-me com essas duas pérolas de escritores lusófonos:
“Quem é capaz de sofrer intensamente, também pode ser capaz de intensa alegria” – Clarice Lispector
“Quem não quiser sofrer que se isole. Feche as portas da sua alma quanto possível à luz do convívio” – Fernando Pessoa