Quando a noite cai, os apelos obscuros da alma emergem. Anjos ou demônios, na madrugada todos se encontram: românticos, bêbados, “cracudos”, juristas, médicos, publicitários, viúvos, solteiros, prostitutas, travestis, órfãos e órfãs das sinaleiras. Por mais gracioso e ensolarado que tenha sido o dia, as cortinas das convenções fecham-se para dar espaço aos bastidores, imerso em lama e sombra.
Se o lado escuro da Terra faz a noite, a instância oculta e não tão aceita da nossa personalidade, não perscrutada pela luz da consciência, submersa no inconsciente pessoal, forma a nossa Sombra. E assim como a noite, de tempos em tempos, ela dá as suas caras.
A cafeína matinal, responsável por manter o ritmo frenético do trabalho e produção capitalista, dão lugar àquela alcoolemia relaxante e seguidamente eufórica/empoderadora, compensando a submissão crônica contra si mesmo. Isso fica clarividente nas mensagens semanais de WhatsApp, quando vemos que construímos uma sociedade que, paradoxalmente, anseia freneticamente pela sexta-feira e pelo fim do expediente como se não houvesse amanhã. Mas o amanhã há, a ressaca vem, o padrão se repete e a roda do Samsara dá as suas voltas. Só os oligofrênicos ou os muito entorpecidos não conseguem perceber isso.
Na madrugada, são ressuscitados ou revividos periodicamente os monstros (ou por vezes os príncipes e princesas mancos, renegados) que (ainda) não podemos assumir publicamente.
Também é lá, na escuridão da noite, sozinhos, que por vezes encontramos nossas angústias e aflições mais profundas. É a escuridão silenciosa e interior, catalisada pela exterior, que nos relembra do vazio existencial, expresso em insônias, crises de pânico, brigas, porres ou suicídios (ou por excepcionais obras de arte, diga-se de passagem, notadamente na literatura).
Qualquer trabalhador noturno ou quem se preste a ser bom observador pode constatar, que as cenas ou figuras mais esdrúxulas possíveis e imagináveis em uma cidade, só podem ser vistas durante a madrugada. Desde o marido que é convocado em meio aos amigos pelo tamanco da esposa … ao casal drogadito, que discute aos berros, contando moedas, se deve comprar o latão de Skol ou de Nova Schin. Desde o vagante paciente com bolsa de colostomia tentando voltar para sua casa no interior … a órfãos abusados te abordando na rua para pedir um lugar onde dormir. Desde os solitários andarilhos das ruas escuras e desertas aos frequentadores assíduos e nada convencionais dos postos de conveniência 24h.
O dia, mesmo que chuvoso, faz seu esforço mercadológico. De algum modo, por mais genuíno que seja, “força a barra”, porque vende, produz ou diz respeito a algo ou alguém que não a si mesmo.
Na noite, tudo é escancarado: dane-se, pois ela não precisa prestar contas a ninguém. Drogadição, adultério, hiperssexualização, agressividade, assédio moral, estupro, machismo, abuso de poder e todas as suas variantes amplificam-se nesse momento.
Quem somos então ao acordar no outro dia? Ou melhor: quem somos de fato? Quais estruturas e modelos de pensamento almejamos manter, relegar, aceitar ou integrar em nossas vidas? Porque dualidade e confrontamento são evidentes como primeiros passos para a transcendência de qualquer problema. Dois.
Simbolicamente, o “um” (ou uno) traduz um estágio indiferenciado do ser, como na imagem mitológica do ouroboros, em que a serpente devora a própria cauda, símbolo primordial da manifestação e da reabsorção cíclica. O “dois” reflete o duplo e o conflito, a ambivalência: há um impasse no nível da consciência; ou isso ou aquilo. O “três” anuncia a função transcendente, em meio aos opostos; é sinal otimista de uma possibilidade de resolução. Já o “quatro”, inserido na geometria dos quadrados perfeitos e mandalas, remete ao Self, ao mesmo tempo centro e regulador da psique, arquétipo da totalidade, nossa “divindade interior”.
O confrontamento do analisando com sua própria Sombra é uma das etapas a ser conduzida pelo psicoterapeuta ao longo da análise: aquele lado esquecido, reprimido ou desvalorizado, que habitualmente costuma ser projetado nos outros, mas que sai fácil (em alguns) quando a bebida entra ou se vai em risos incontidos de piadas “politicamente incorretas”.
Para fins de exemplo (historicamente), “Thriller” tornou-se o álbum mais vendido mundialmente e revolucionou a cultura pop dos anos 80. Devemos o mérito à genialidade artística/musical de Michael Jackson e coprodutores, mas não podemos negar, atravéspsicologia junguiana, a conotação arquetípica e o espírito iminente de transformação da época, em que vilão e mocinho são a mesma pessoa num videoclipe ambientado num cemitério.
Infelizmente e por ironia do destino, foi com toques de infantilismo e inadequação do afeto que Michael procurou em seu rancho “Neverland” (Terra do Nunca) a infância que lhe foi negada,às custas até mesmo de acusações de pedofilia. Culpado ou não, o fato é que sua mente, perturbada, não conseguiu integrar sua própria sombra e (não por acaso) morreu aos 50 anos, vítima de uma overdose de Propofol, um sedativo hipnótico (anestésico), tamanha era sua insônia, por estar vivendo tal qual um zumbi ou morto-vivo, como as mesmas criaturas do clipe que estrelou.
Vida e morte, luz e sombra, são duas faces da mesma moeda. Aquele que protege a mocinha também a ameaça, e assim também o é dentro de nós, internamente. Negar o instinto daquilo que impele a cumprir nosso chamado interior significa pecar contra nós mesmos e aí reside nossa traição fundamental. Isso de modo algum é uma apologia ao caos. Não significa frontalizar e/ou não ter limites, mas abaixar as barreiras do nosso ego, permitindo que potencialidades inatas, antes ocultas, se manifestem no plano da realidade, desenvolvendo atitudes psicológicas mais favoráveis à nossa completude.
Para uns, pode ser questão de assumir sua opção sexual, envolvendo coragem e ousadia. Para outros, algo mais trivial, como alguém vindo de família tradicional cursar uma faculdade de Artes Cênicas, por exemplo. Ou chegar aos cinquenta, em plena metanóia, e cessar de fato um casamento já findado há anos, para ir em busca da própria felicidade.As possibilidades são infinitas e contínuas ao longo da(s) vida(s).
De um jeito ou de outro, o fato é que estamos nesse movimento todos os dias. Nascemos, crescemos, procriamos, envelhecemos e morremos. Nesse interim, passamos morrendo mais a cada dia, de modo que já nascemos com idade suficiente para morrer. A cada nascer do sol e despertar, nasce uma possibilidade de vida e criatividade nessa contrapartida de morte em nós: o que dá significação à vida é a morte e o que dá significação à morte é a vida.
Se Jung, arqueólogo da alma, me permite alguma licença poética, diria que sua obra possibilita um trabalho árduo, mas não impossível, de que, nem dia nem noite, a madrugada interior torne-se aurora em mente, corpo e espírito para todos nós, aqui de passagem, nesse “pálido ponto azul” iluminado (como diz Carl Sagan), em meio à vastidão sombria do Universo.
João Rana Vieira Sarquis – Médico Clínico da Estratégia de Saúde da Família (Itatim-BA). CRM-BA 25646.
Pós-graduando em Psicoterapia Analítica no IJBA (turma 2017).
Referências:
– JUNG, C.G. Obras Completas vol. 7/2 – O Eu e o Inconsciente. Vozes, 2015.
– ZWEIG, C. e ABRAMS, J. Ao Encontro da Sombra. Cultrix, 1994.
– JUNG, C.G. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977
– Memórias, Sonhos, Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
– JUNG, C.G. Obras Completas vol. 7/1 – Psicologia do Inconsciente. Vozes, 2015.
– Observações de um jovem médico e psicoterapeuta.