Minha Sereia, Rainha do Mar
Minha Sereia, Rainha do Mar
Seu canto é bonito quando tem luar…[i]
A imagem milenar da Grande Mãe, com ventre redondo e grandes mamas, nos remete a aurora da humanidade, ao primeiro momento sagrado, quando a capacidade de gerar vida constituía a fagulha mágica em cada mulher, a centelha valorosa.[ii]
Os séculos passaram, deuses masculinos substituíram e mutilaram a Grande Mãe[iii]. No entanto, o princípio feminino persiste em homens e mulheres. O corpo feminino é naturalmente configurado para a acolhida, para gerar e nutrir. Já os homens guardam na alma a disposição emocional e delicada. Segundo Jung, a anima, guardiã das emoções masculinas traz oculta a sutileza escondida, guarda em si o tesouro da deusa, o caminho para o autoconhecimento[iv].
No mundo imaginal brasileiro o elemento africano trouxe elementos fortes, através das culturas Nagô, Banto e, principalmente, Yorubá. Nesses panteões, Yemanjá, Senhora das águas salgadas se mostra muito próxima da figura arquetípica da Grande Mãe.
Segundo Prandi, Yemanjá é filha de Olokun, antigo Senhor do mar, e quando se casou com Oquerê, já tinha dez filhos, aos quais amamentou e nutriu se pressa. Ela avisou ao marido que jamais toleraria que ele criticasse o tamanho de suas mamas, marca de sua capacidade para cuidar e alimentar. Porém, teve sua solicitação desrespeitada. Então, fugiu e foi perseguida pelo esposo. No seu momento de desespero abriu uma garrafa que lhe tinha sido dada por seu pai, e assim pode se refugiar, transportada de volta a sua casa primordial, o fundo do mar[v].
Numa ampliação, à luz da Psicologia Junguiana, um aspecto masculino (animus) saudável se sobrepôs, dando direção e força para escapar do tirano que minimiza e desvaloriza a vocação maternal e cuidadora.
Num recorte histórico atual, em que o masculino autoritário e patriarcal se mostra como ideal de sucesso e o ser competitivo relega a segundo plano a força amorosa da mãe protetora, o mito de Yemanjá serve de alento e inspiração. A Rainha do Mar não se submeteu ao domínio, foi fiel à própria essência, chegando inteira à profundidade de suas águas, entregando-se aos mistérios abissais, retornando ao próprio elemento plena de possibilidades de autoconhecimento e cura.
Em outro mito sobre Yemanjá, Olorum (equivalente a Deus Criador), solicitou que Ela cuidasse de Oxalá, criador dos homens, que já na figura do velho Oxalufã, necessitava de ajuda prática, inclusive para organizar oferendas recebidas. Porém, tal função novamente a relegaria a um plano secundário, e a Deusa se sentiu subaproveitada. Então, num contínuo de raiva e reclamações, acabou enlouquecendo Oxalá, de quem deveria cuidar.
Desesperada por não ter cumprido a missão que lhe coubera, Yemanjá cuidou de Oxalá com banhos, canto suave, ambiente limpo e silêncio nas horas necessárias. Ao ver a competência da Rainha do Mar em restabelecer a saude mental do criador dos homens, Olorum entregou á Yemanjá a missão de cuidar dos Oris, das cabeças de homens e mulheres. Assim, Ela se consagrou como senhora do mudo emocional, das águas psíquicas de cada um, guardiã do inconsciente[vi].
Yemanjá, no Brasil é o Orixá mais cultuado e conhecido, uma lembrança de que o princípio feminino se mantém vivo, apesar dos caminhos belicosos e masculinos que a humanidade tem percorrido ao longo da História. Ela convida ao autocuidado e ao cuidado com o próximo, pois o mar é grande e não tem limites ou paredes. Lá moram seres encantados e monstros devoradores. Como disse Fernando pessoa, no poema Mar Português: “Deus ao mar o perigo e o abismo deu, mas nele é que espelhou o céu”[vii]. Mergulhar no mar é descobrir o mudo da mãe misteriosa, que nos espera com perigos, mas com possibilidades infinitas e curativas.
Mar é mãe, etimológica e simbolicamente. Que possamos aceitar o abraço e o contato do manto azul e salgado. Cabe os homens e mulheres modernos o resgate da mãe prateada. Quem sabe um caminho para a saúde emocional.
Odoyá! Odociaba[viii]!
Marissol Lourenço Hermann Teixeira, Psiquiatra, Especialista em Psicologia junguiana pelo IJEP e aluna do curso de arteterapia do IJEP
E-mail: marissol.psiquiatria@gmail.com
[i] Ponto cantado de candomblé, cultos de nação e Umbanda
[ii] BOFF, Leonardo. Como o patriarcado se impôs ao matriarcado há mais de 10 mil anos in: portal O Tempo. Site: https://www.otempo.com.br/opinião/leonardo-boff/como-o-patriarcado-se-impôs-ao-matriarcado-ha-mais-de-10-mil-anos-1.1574660. Acessado em 12/08/2020
[iii] ESTÉS, Clarisse Pinkola. Mulheres que correm com os lobos. Pag 15. Ed. Rocco. Rio de Janeiro, 1994
[iv] JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos Ed. Zahar, 1981 pag 481
[v] PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. Pag 383 q 384. Ed. Companhia das Letras, 2005, São Paulo.
[vi] PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. Pag 397. Ed. Companhia das Letras. São Paulo, 2005.
[vii] PESSOA, Fernando. Lisboa. Ed. Ática10 edição, 1972
[viii] Saudação a Mãe das Águas.