Resolvi ler o livro escrito pelo canadense William P. Young e colocá-lo no divã para uma análise. Esse livro nasceu em 2007 e, devido ao seu sucesso entre os leitores iniciais, ganhou o mundo e foi lançado no Brasil em 2008. Trata-se de um texto situado na fronteira entre a ficção distrativa e a ficção utilitária. É uma fábula. Desde que foi lançado, permanece entre os mais vendidos na categoria ficção. Por que tanto interesse por essa história fabulosa?
O interesse de um povo por uma fábula revela o quanto um conflito comum está sendo compensado. De acordo com Bérgson, um filosofo francês, “o homem é, a cada passo de seu percurso na terra, confrontado com a finitude. E por meio dela, com o tempo e a angustia, leva-o a buscar modos de escapar de seu destino com a fabulação”. Esse é o papel dos nossos sonhos, um mundo onde dispensamos o conceito de verdade.
O texto conta a história de Mack. Um homem que, aos treze anos de idade, confessou aos colegas o quanto se ressentia em não poder defender sua mãe dos maltratos de seu pai, um alcoólatra inveterado que se considerava religioso. Por causa disso, foi torturado por ele. A saída que o rapaz encontrou foi abandonar a família e colocar veneno de rato nas garrafas das bebidas do pai. Na fase adulta, Mack tornou-se um chefe de família apaixonado pela mulher. Assumiu a responsabilidade de educar os cinco filhos sem se permitir falhar, diferentemente da imagem que carregava do pai. Missy, a filha caçula de seis anos, foi assassinada por um maníaco sexual. Foi nesse momento que começou a Grande Tristeza e o mundo se descoloriu para ele. Quatro anos depois, Mack encontrou um modo de se reconciliar com “Papai”.
Um sofrimento vivenciado em sua literalidade é insuportável. A fabulação dessa dor, ou a sua transformação em símbolo, permite que a mente e o corpo se harmonizem para dar um sentido a essa experiência. Missy gostava de ouvir uma lenda em que a filha de um cacique se jogava de um penhasco para cumprir o sacrifício necessário para salvar toda a tribo. Justamente Missy foi sacrificada pelo maníaco. O local do sacrifício, a cabana, se tornou para Mack um símbolo sagrado capaz de mudar-lhe a vida. A experiência simbólica – cabana – fê-lo reconciliar-se com “Papai” e obter a redenção de suas culpas.
O sacrifício, em nossa existência, depende do modo como estabelecemos a relação com o sagrado. Precisamos tomar consciência do que consideramos sagrado e qual o sacrifício que deveremos cumprir para conseguir essa condição. A psicologia de Jung orienta sacrificar a energia que direcionamos para os nossos anseios do passado e ter a coragem de enfrentar o futuro, mesmo quando ele se apresenta vazio e desencantado. A cada sacrifício sempre haverá um acontecimento que se parece com uma morte. Isto porque o antigo deverá sempre ceder lugar ao que é novo. O sagrado é conseguir ter a vida plena e singular, para morrer com dignidade e honra.
Para a psicologia junguiana, a natureza do homem contém padrões capazes de recriar as experiências humanas em todas as gerações que se sucedem. Essas manifestações são feitas por meio de símbolos, verdadeiras fontes de energia para veicular o sentido e significado dos nossos comportamentos. Esses símbolos se mostram pelas imagens que vestem. Por isso, cada pessoa pode percebê-los de acordo com a sua experiência pessoal. A cabana, por exemplo, tem uma imagem que se tornou símbolo para Mack. Todo símbolo pode ser ressignificado e, dessa forma, a cabana do começo da história, palco de uma tragédia, teve um significado diferente daquele que foi dado no final, – palco de uma redenção.
Mack, depois de um acidente, entra em estado de inconsciência clínica e seu cérebro “sonha”. Neste “sonho” ele vive a experiência da cabana como a rever todas as dúvidas com o sagrado, para dessa forma conseguir a redenção. Deus lhe aparece em suas três formas: Pai, Filho e Espírito Santo. Deus, a quem ele chamou de “Papai” tinha a imagem de uma mulher alta e negra. Cristo era um marceneiro parecendo ser do Oriente Médio e, por fim, o Espírito Santo lhe apareceu como uma mulher miúda claramente Asiática.
Tudo que é psíquico precisa ser traduzido em imagens. Essa foi a necessidade de Mack. Ele precisava romper essa prisão das convenções e paradigmas. Chamar um homem de “papai” seria um desafio muito grande para o momento, porém na forma de uma grande mãe capaz de nutri-lo, deve ter sido feita a compensação. É assim o processo de cura na psicoterapia, uma experiência com as figuras da imaginação e não com um conceito.
Para os junguianos, a verdadeira religião é um meio de se praticar rituais e fazer contato com o todo desconhecido e misterioso. É como no mundo dos sonhos. Não se pode reduzir todo o mistério a conceitos. Lá, no mundo dos sonhos, a consciência será apenas uma porta para permitir o trânsito livre entre dois mundos: o interior e o exterior. Neste mundo dos sonhos, jamais alguém deixará de escutar as súplicas de uma gota d’água trêmula jogando-se para um abismo até desaparecer em sua própria natureza, a fim de demonstrar o quanto o mundo dividido entre o bem e o mal é mera ilusão.
Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br / www.ijba.com.br