Psicologia e epidemias

A revista “Filosofia”, em sua edição de Julho de 2020, levantou a seguinte questão: “teria o método científico chegado ao seu fim?” O artigo da capa discute os desafios da ciência em situações como a pandemia de coronavírus, quando a dificuldade inerente ao próprio método científico em oferecer resposta imediata a questões emergentes torna o terreno propício para o surgimento do que Jung chamou de “epidemias psíquicas”: teorias conspiratórias, messianismos, panaceias que alastram-se rapidamente e ignorando o bom-senso. Muitos médicos, esquecendo o mandamento hipocrático primum non nocere (“em primeiro lugar, evitar fazer o mal”), têm mostrado dificuldades em abandonar a persona do salvador e aceitar sua impotência diante da ausência de evidência científica de qualidade que embase terapias medicamentosas contra vírus SARS-CoV2.

 

Para a Medicina, o tipo de pesquisa considerado “padrão-ouro” para a medição dos efeitos terapêuticos de determinada droga é o ensaio clínico duplo-cego randomizado. Neste modelo, dois grupos de pessoas grandes o suficiente para atender às exigências de representatividade estatística são “randomizados”, isto é, garante-se que em cada um deles existam pessoas de idade, gênero, doenças preexistentes (entre outras variáveis) em igual proporção, para evitar que a predominância de uma característica num dos grupos interfira nos resultados. Um dos grupos receberá a droga proposta como tratamento, desde que esta já tenha sido aprovada em testes preliminares in vitro e em animais. O outro grupo receberá algo inócuo (ou “placebo”) no lugar da droga verdadeira, de modo que, nem quem é tratado, nem quem trata sabe quem recebe a medicação e quem recebe o placebo. Este fator dá o caráter “duplo-cego” da pesquisa, importante para distinguir a ação da substância no organismo dos efeitos psicológicos causados pelo sentimento de receber de alguém um cuidado (“efeito placebo”). Este efeito ocorre mesmo quando o paciente não sabe se está recebendo a droga, mas o médico sabe e transmite-lhe a “esperança” da cura de forma inconsciente.

 

Diferentemente da pesquisa médico-farmacológica, a pesquisa científica em Psicologia Clínica apresenta uma questão peculiar: na psicoterapia, a intervenção terapêutica e a resposta a ela são bastante individualizadas, por conta do caráter fortemente subjetivo do sofrimento psíquico e principalmente do modo único como cada pessoa responde a ele. Este fator apresenta grandes desafios à generalização dos resultados da pesquisa, que é necessária para a validação do tratamento em uma população-alvo. O desenvolvimento da pesquisa em Psicologia é empírico e de difícil adequação às exigências dos testes que determinam a “eficácia”, termo que se refere ao efeito medido sob condições estritamente controladas, onde o componente humano (mais especificamente, o afetivo) do processo é indesejável e considerado como “variável confundidora”.  O desfecho positivo desejado na intervenção terapêutica é chamado de “efetividade”, isto é: aquele verificado em situações da prática cotidiana (RAMOS, 2019). Isto implica que o “princípio ativo” da psicoterapia não pode ser dissociado do “efeito placebo” sem que se perca sua função ou finalidade. Para Jung:

“O grande fator de cura na psicoterapia é a personalidade do médico. Gostaria de enfatizar novamente que os mais recentes desenvolvimentos da psicologia analítica nos confrontam com elementos imponderáveis da personalidade humana; precisamos aprender a colocar na base a personalidade do médico como um fator curativo ou prejudicial; e agora é necessário sua própria transformação – a autoeducação do educador” (JUNG, 1966, apud RAMOS, 2019).

A pergunta, aparentemente retórica, feita na revista “Filosofia” já tem sido respondida há algum tempo, no que se chama de paradigma pós-moderno do pensamento científico. Segundo a Doutora em Psicologia Clínica Eloísa Penna:

“O movimento que questiona as bases do pensamento científico moderno e resulta na concepção de ciência pós-moderna é caracterizado pela ‘desdogmatização da ciência’ (Santos, 2000) e suas principais características da pós-modernidade, de acordo com Hauke (2001), são: pluralidade de pontos de vista, diversidade de epistemologias e métodos, aceitação de paradoxos e contradições, inevitabilidade de imprecisão e incerteza, ênfase na relatividade dos parâmetros e na polivalência de significados, concepção de verdade transitória e relativa, valorização do autoconhecimento e, por conseguinte, da subjetividade na aquisição e na produção de conhecimento e integração da individualidade na coletividade” (PENNA, 2005).

Diferentemente da pretensão científica em produzir um conhecimento puramente objetivo, livre da subjetividade humana, “Jung critica a exigência de objetividade que exclui a subjetividade nos métodos científicos, declarando que conhecimento e autoconhecimento são indissociáveis e condicionados pela psique do pesquisador” (PENNA, 2005).

 

Parte da resposta da sociedade a uma epidemia tão severa pode e deve ser dada pelo método científico tradicional. Mas há um componente, classicamente subtraído da Medicina e das Ciências da natureza em geral, que nenhum estudo de eficácia pode preencher: a dimensão do significado ou sentido da experiência, o valor pessoal dos processos vitais, a reflexão sobre os sentimentos que surgem diante da ameaça do contágio, o medo de morrer precocemente, de perder entes queridos, ou de perder o emprego, ter seu modo de vida desfigurado numa sociedade pós-pandemia, a angústia do confinamento e isolamento social, entre muitos outros. Estes sentimentos se superpuseram às inquietações existenciais preexistentes e nos fizeram buscar desesperadamente algo que desse sentido à nossa existência, ameaçada por um contágio iminente e uma evolução incerta do processo patológico.

 

A Psicoterapia Analítica nos ensina a encarar o indivíduo enquanto um todo (holos) psicossomático, que não vai ao consultório apenas em busca de uma substância para sanar os males do corpo, mas também busca na pessoa daquele que o atende a escuta para o que lhe molesta a alma, em sua relação consigo mesmo e com o próximo; seus valores, medos, desejos e decisões. Jung encarou as crenças, religiões, os mitos pessoais de seus pacientes como evidências objetivas de uma atividade psíquica vital para seu bem estar, tanto quanto os dados vitais que medimos num atendimento médico (pressão arterial, frequência cardíaca etc.). A saúde das ideias, dos princípios e moral, dos significados, do sagrado e do sentido da vida individual são, por assim dizer, os sinais vitais da alma, só possíveis de serem aferidos na escuta e no acolhimento humano, algo que jamais pode ser substituído por aparelhos, fármacos ou técnicas específicas. Desprezando a variável humana da equação, a Ciência deixa o campo livre para ideologias e fanatismos diversos que conquistarão as massas pelo Calcanhar de Aquiles da cultura contemporânea: a necessidade aguda de um sentido para o frio e impessoal mundo das leis da Física.

 

De nada valerá todo o avanço tecnológico em uma cultura que gera cada vez mais insatisfação pessoal e adoecimento psíquico em troca de benefícios cada vez menos evidentes. O economista australiano Richard Dennis reflete, por exemplo, sobre a incapacidade da ciência econômica para trazer valor à sociedade, ainda que seja uma disciplina cujo objeto principal é a riqueza. Em seu artigo “Se Economia é uma ciência, por que ela não está sendo mais útil?”, ele afirma:

“Eu gosto de Economia e penso que ela tem algo a oferecer a qualquer democracia que precise tomar decisões duras. […] Mas nenhum economista pode nos dizer em que tipo de sociedade queremos viver, quanto do nosso meio ambiente queremos proteger ou até em que tipo de casa, deveríamos viver. Economistas sabem o preço de tudo e o valor de nada. Valores dependem inteiramente de nós” (DENNISS, 2019; tradução nossa).

 

Denniss concorda com Jung, que diz:

“Tem-se a impressão de se poder fazer qualquer tipo de ciência apenas com o intelecto; mas isto não ocorre com a Psicologia, cujo objeto exorbita os dois aspectos que nos são transmitidos através da percepção sensorial e do pensamento. A função de valor, ou seja, o sentimento, constitui parte integrante da orientação da consciência; por isso, não pode faltar em um julgamento psicológico mais ou menos completo, pois de outra forma o modelo do processo real a ser produzido seria incompleto. É inerente a todo processo psíquico a qualidade de valor, isto é, a tonalidade afetiva. Esta tonalidade indica-nos em que medida o sujeito foi afetado pelo processo, ou melhor, o que este processo significa para ele na medida em que o processo alcança a consciência. É mediante o ‘afeto’ que o sujeito é envolvido e passa, consequentemente, a sentir todo o peso da realidade. Esta diferença corresponde, portanto, mais ou menos àquela que existe entre a descrição de uma enfermidade grave que se lê em algum livro e a doença real que o paciente tem. Psicologicamente, não se possui o que não se experimentou na realidade. Uma percepção meramente intelectual pouco significa, pois o que se conhece são meras palavras e não a substância a partir de dentro” (JUNG, 2013).

Nenhuma sociedade que ignore a necessidade do desenvolvimento psíquico, através da autoeducação, do autoconhecimento, está livre de um retorno “inexplicável” do obscurantismo, que ameaça destruir com um só golpe todo o progresso científico até então conquistado.

 


Paulo Nunes – Médico graduado na UFBA em 2005. Psicoterapeuta Junguiano pós-graduado no IJBA. Mestrando em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Contato: (79) 99859-1753 (Telefone e whatsapp).  Instagram.com/paulonunes181

 

REFERÊNCIAS

 

DENNISS, R. If economics is a science, why isn’t it being more helpful? Disponível em https://www.theguardian.com/commentisfree/2019/oct/30/if-economics-is-a-science-why-isnt-it-being-more-helpful, último acesso em 21 de junho de 2020.

Filosofia Ciência e Vida, Ed. 162. São Paulo, EditoraEscala, 2020.

JUNG, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

PENNA, Eloisa M. D.. O paradigma junguiano no contexto da metodologia qualitativa de pesquisa. Psicol. USP [online]. 2005, vol.16, n.3, pp.71-94. ISSN 0103-6564.  https://doi.org/10.1590/S0103-65642005000200005, último acesso em 13 de março de 2021.

RAMOS, D. G. Efetividade versus eficácia: questões desafiadoras na avaliação de técnicas psicoterapêuticas. In Kublikowski, I; Kahhale, E.M.S. P. e Tosta, R.M. (orgs) – Pesquisas Em Psicologia Clínica: Contexto E Desafios. Sāo Paulo: Educ, 2019, p. 47 – 63. Disponível em https://www.pucsp.br/educ/downloads/Pesquisas_em_Psicologia.pdf.