Por Carlos São Paulo
Cinderela cresceu e, por isso, tinha dificuldades para com suas outras duas
irmãs. Passava por um momento crítico, pois mudou a visão que tinha dos seus pais:
agora eles eram seres humanos tão imperfeitos quanto as demais pessoas. Essa é uma
consequência natural de quando adquirimos maturidade e estamos no caminho do
desenvolvimento.
Por outro lado, as irmãs eram tão evolvidas com sua boa mãe que não
conseguiam sair do mundo da meninice. Cinderela agia como se aquela mamãe que a
envolvia nos braços da infância já tivesse morrido, embora a relação afetiva para com
ela permanecesse.
A genitora não sabia lidar com a juventude que não mais existia e compensava
apegando-se a suas outras duas filhas. Agia com elas como se fossem algo seu e, para
não as perder, desperdiçava afetos e as tornavam obedientes, garantindo assim a
interdependência entre mãe e filhas. Ela não percebia o quanto prejudicava o
desenvolvimento de suas meninas.
As irmãs de Cinderela seguiam os padrões impostos pela matriarca e tentavam
ser uma cópia dela. Até vestiam-se de forma semelhante e tinham as mesmas ideias.
Cinderela por outro lado, procurava seu feminino autêntico. Ela era agora uma pessoa
que veio ao mundo para seguir sua trajetória do destino a cumprir. Conservou em si o
espírito de ter tido uma boa mãe que permitiu seu crescimento, mas que agora se
tornara uma madrasta.
As irmãs, identificadas entre si achavam Cinderela estranha e a tratavam como
se ela fosse apenas filha do pai. A quebra da fraternidade reflete muito mais que uma
simples desavença entre eles. Essa é uma forma de nos relacionarmos com as
dimensões menos conhecidas, que se ocultam nas profundezas de nossa inconsciência.
Para que, na vida familiar, possa haver resolução de conflitos, seria preciso que
seus membros em guerra pudessem ser sinceros o bastante para conversar sobre onde
está a verdadeira mágoa e reconhecer a responsabilidade dos pais sobre o que
agravou.
As manas de Cinderela não entendiam onde ficavam as suas verdadeiras
amarguras simplesmente a invejavam e odiavam sem nenhuma consciência do quanto
enxergavam nela o que faltava em si mesmas. Esse ódio não era por antipatia inata
entre irmãos e sim por causa da influência da complexa dinâmica familiar.
Cinderela procurava seu feminino autêntico para mostrar sua identidade ao
mundo, enquanto sua mãe apresentava um ciúme doentio por achar que só essa filha
tinha o amor do pai. Não havia realização amorosa entre ela e o marido. Em um plano
inconsciente, perseguiam a pobre moça, tendo-a como uma órfã de mãe que amava
apenas o pai.
Cinderela sofria. O ato de usar a magia era para escapar do perigo e conseguir
ficar pronta para enfrentar o conflito diretamente, porém seu mundo encantado
estava limitado pelo tempo: meia-noite, quando o dia termina e começa outro ciclo.
Foi assim que ela soube superar e encontrar o amor que lhe faltava. Sem a beleza de
nossas ilusões e transformações, não podemos conseguir a realização precisamos
fazer. Ela, então, passou a ser vista pelos homens como uma princesa.
Foi o sofrimento que lhe trouxe para ela o crescimento natural da sua
personalidade. Foi assim que ocorreu a morte de uma menina imatura e inocente. Seu
corpo, transformado em cinzas por meio da queima no fogo das emoções, preparou-a
para a vida e para o encontro com o masculino.
Apenas depois que o aspecto ingênuo de uma mulher acaba, ela está pronta
para entrar em contato com o sexo oposto. Sempre que estamos em busca da nossa
individualidade, sofremos perseguições.
A mulher em função dos sentimentos, rompe as regras e traz a flexibilidade
para que, de forma saudável, consiga o equilíbrio da consciência. Foi assim que
Cinderela conseguiu encontrar seu par perfeito, como um par de sapatos que se
completam. As suas irmãs foram mutiladas em sua psique, ao permanecerem
infantilizadas e presas ao mundo da matriarca.
Dessa forma, nossa heroína ficou pronta para seguir a vida com seus novos
desafios e sua maturidade ajudando a encontrar os caminhos e a olhar para os
aspectos desconhecidos de si mesma. Passava, assim, a ser guiada pela ideia da
totalidade, ou pelo Deus que abençoa o caminho de quem se sacrifica para conseguir o
desenvolvimento, uma vez que a divindade nos manda sempre aquilo que devemos
viver, a porção que nos cabe e que é só nossa.
Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br