O cão e os homens

Por Carlos São Paulo

Maggie farejava a casa inteira. O cheiro do dono ainda existia em meio a outro odor até então desconhecido pela cadela. Era o cheiro de pólvora. A cachorra tentava encontrá-lo, mas o seu ambiente tinha se modificado. O animal urrava, não se sabe se de fome, sede, dor ou saudade. Parecia não existir ninguém para ouvir os grunhidos, cujo som era suplantado pelas bombas que estouravam.

            Ao conseguir saltar para um outro lugar, também cheio de tijolos e pedaços de paredes amontoadas, sentiu-se presa. Cheirava o rosto da mulher que trabalhava na casa. O rosto não se mexia e estava como uma pedra de mármore embaixo de outras pedras que cobriam seu corpo.

            A Maggie foi levantada por uma mão humana. Diante da impotência do seu pequeno porte e da força dos homens, foi levada sabe-se lá para onde. Nada era mais como antes. Não reconhecia o que cheirava, tampouco as mãos que a alisavam ou arrastavam.

            Em algum lugar, os humanos demonstravam sua capacidade destrutiva e as ideias sobre heróis, compensando suas vidas frustradas que viveram e esquecendo-se da criança que foram um dia e abraçando o homem antigo que existe dentro de si. Os covardes não sabiam que eram covardes, mas justamente por isso não se amavam e precisavam contemplar os que achavam mais corajosos, ou os mais sagazes. Tinham heróis e anti-heróis. Os homens queriam exibir seu poder e ganhar mais território. Assim também fazem os répteis.

            Aviões, máquinas evoluídas de guerra, atravessavam os céus como a mostrar o reverso do amor: o poder. As bases do comportamento humano, são reveladas no que o psiquiatra Jung chamou de “inconsciente coletivo”. Para se entender como esse inconsciente é formado, estudamos os mitos dos antigos povos.

            Um desses mitos conta que o deus do amor, Eros, é filho de Poros (o deus da riqueza ou da abundância) e de Penia (a deusa da pobreza ou miséria). No jantar oferecido pelos deuses, quando Afrodite (a deusa da beleza) nasceu, Penia chega a mendigar junto à porta. Poros, embriagado, adormece no jardim. Penia aproveita e deita-se junto a ele e concebe o deus do amor. Assim, Eros vem da mistura que o torna inquieto e apaixonado, pobre e rico. Ao viver na penúria, aspira ao saber e à beleza.

O amor, portanto, vem da dualidade: por um lado, falta de recursos; por outro, seus excessos. Não é pobre e nem rico, não é ignorante e nem sábio. Ele é o equilíbrio entre esses extremos. Em um outro mito, o mesmo deus do amor vem da relação entre a deusa da beleza, Afrodite, e o deus da guerra, Ares. Esse deus, na Grécia Antiga, era considerado o deus covarde, impopular entre os deuses e nenhuma cidade da Grécia o queria como patrono. Trata-se de outra dualidade para explicar o amor, a relação da beleza com a guerra. Com essas metáforas, o que dizer do poder e do amor? Para surgir Eros, é preciso transcender o belo e o desejado como também a crueldade feia e indesejável. 

Na época hippie, surgiram as roupas floridas e o lema: “Faça amor, e não faça a guerra”. Era um pedido para prevalecer o feminino, nosso lado acolhedor, mas venceram as armas, que penetram, o lado masculino. Precisamos viver com esses dois lados em harmonia. Apenas dessa forma, surge o amor a si mesmo e ao outro como resultado da união desses dois opostos.

Embaixo dos escombros, um corpo ainda com vida, gritava de forma apaixonada:

— Tomem conta da Maggie, minha única companhia.

“Quem vai cuidar dela?”, interrogava a si mesmo. E pensava: “morrer não é coisa que se faça com uma cadelinha”.

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Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br