por Waldemar Magaldi Filho
Na minha prática como analista junguiano, onde nos últimos 35 anos atendo umas 40 pessoas por semana, constantemente me deparo com a dificuldade da tomada de atitude assertiva, reflexiva, consciente e consequente, alinhada com o íntimo e respeitando, integrativamente, as dimensões familiares, sociais, laborais, espirituais, físicas e amorosas, levando em conta a sombra, os complexos e, acima de tudo, a alma. Agir, de fato, é o resultado de uma decisão, e esta implica em cisões, onde somos obrigados, simultaneamente, fazer escolhas e abandonos, e isso não é tarefa fácil diante da angústia, falta de fé, de sentido, das dependências, condicionamentos, hábitos, inseguranças, vícios, medos, ansiedades, ressentimentos, culpas, entre outras questões e padrões existenciais.
O ato da vontade não é tarefa fácil! Muitas vezes, após uma sessão, aparentemente transformadora, onde meu cliente vivenciou muitos insights, experienciou uma catarse reveladora, percebeu seus padrões de repetição, de condicionamentos ou suas tentativas, até então inconscientes, de reparar a vida mal vivida ou não vivida dos seus ancestrais, inadvertidamente alimento a fantasia de que, na próxima sessão, ele retornará totalmente transformado, com decisões e atitudes já encaminhas. Porém, na maioria das vezes, essa expectativa é frustrada, ao receber, na próxima sessão, uma pessoa mais regredida, retomando as queixas e dificuldades de muitas sessões anteriores.
Por que isso acontece? Na realidade, empreender mudanças não é tarefa fácil. É necessário enfrentar inúmeros mecanismos de defesa, que impedem as tomadas de atitude. Entre eles temos os padrões de condicionamento neurocerebral (porque o cérebro é uma máquina viciante que busca padrões de repetição), a dependência bioquímica correspondente ao afeto repetitivo e sua respectiva emoção, que funcionam como vício nas substâncias endógenas e, para complicar um pouco mais, os condicionamentos das relações interpessoais, onde nosso entorno relacional sabota qualquer tentativa de mudança, porque irá tirá-los da zona de conforto. Essa é a dinâmica da codependêcia, onde eles acabam dependendo da dependência dos dependentes e, por isso mesmo, dificultam a sobriedade dos “seus” dependentes.
Por isso, a evolução é tão difícil de acontecer, porque depende do desenvolvimento, que equivale a romper com determinados envolvimentos, exigindo um processo de divisão, diferenciação, separação, cisão e superação da crise da tomada de atitude, para que possa acontecer, posteriormente, a integração dos conteúdos separados, que faziam parte dos aspectos sombrios, outrora projetados ou negados. Porém, esse processo não depende apenas da vontade, do desejo, do conhecimento da necessidade de transformação ou devido a orientação de algum profissional, parente ou amigo. Porque existe um tempo que não é o tempo de Cronos, remetendo-nos ao tempo de Kairós, que não é lógico e depende dos contextos idiossincrásicos de cada indivíduo, e do momento em que a dor da manutenção do status quo passa a ser maior do que a dor do medo da transformação, e suas consequentes separações.
Fora isso, também tem a influência das fixações nos padrões unilaterais, onde determinados aspectos da natureza humana ficam extremados, “roubando” a energia psíquica das demais potencialidades e “atores”. Isso é o que chamamos, na psicologia analítica, de complexos constelados que, dependendo da intensidade, unilateralidade e literalidade de expressão, ganham o adjetivo de psicopatologia que, “é dotada de poderosa coerência interior e tem sua totalidade própria e goza de um grau relativamente elevado de autonomia” (Jung, 1984, A Natureza da Psique, §201). Porque os complexos “são grupos de associações, com tendência de movimento próprio, de viverem sua vida independentemente de nossa intenção” (Jung, 1983, Fundamentos de Psicologia Analítica, § 67). Levando em consideração de que a distribuição da energia psíquica, num indivíduo saudável, deve ser investida em todas as seis direções (frente/atrás; acima/abaixo; dentro/fora), contemplando toda diversidade e pluralidade dos universais, independentemente de suas qualidades. Porque, o que gera a “patologia”, é o investimento de energia psíquica em um ou alguns determinados aspectos universais, em detrimento da multiplicidade existente em nós, independentemente da sua característica ser atribuída ao bem ou ao mal, porque todo excesso torna-se nocivo e patológico.
Somos únicos, criativos, complexos e o que chamamos de realidade, na verdade, é resultado das nossas produções mentais, que estão flutuando na superfície do grande mar do inconsciente, com todo seu mistério que, como disse Jung, é ávido em tornar-se realização. Onde todos os universais, presentes na nossa existência, podem contribuir para nos tornar singulares. E, por isso mesmo, uma mesma realidade comporta infinitas “verdades”. Obviamente, todas são legítimas e precisam ser acolhidas de forma simbólica, porque ao literalizarmos, diabolizamos a vida, hipostasiando, reificando, generalizando e unilateralizando, monoliticamente e monotematicamente, os fenômenos da natureza.
Divididos e paralisados, passamos a lutar, iludidamente, por mudanças externas, sem compreender que elas precisam acontecer, primeiramente, no nosso íntimo. Mas, na prática, o que as pessoas mais desejam é que tudo mude, com exceção delas mesmas. Na maioria das vezes, quando procuram um analista, a expectativa é de que ele seja um aliado para ajudá-las a transformar os outros, por acreditarem serem os causadores dos problemas das suas vidas. A unidade da consciência é uma ilusão, o Ego lida com recortes das fantasias, desejos, vontades, medos entre outras emoções e afetos, onde tudo que se torna realidade, perde a perspectiva da perfeição e plenitude, por deixar o âmbito das ideias. Por isso, uma das causas da resistência em realizar pode ser a de perder a perspectiva da perfeição e plenitude, que leva a frustação do ideal fantasiado.
Sabemos que tudo que vira realidade, imediatamente, começa a produzir frustações, em função da consciência ser apenas um recorte desintegrativo e fragmentário da totalidade psíquica, devido sua compulsão dissociativa, mas que se imagina totalidade, explícita em seus infinitos auto comandos do tipo “tem que ter” autocontrole, autossuficiência, autoestima, entre outros padrões normativos e imperativos que, se ganham muita autonomia, unilateralidade e literalidade, estimulam o contra ponto opositivo, na forma de doenças. Nossa mente, mente para nós mesmos, antes mesmo de mentir para os outros.
O Ego precisa aprender a servir a alma e reconhecer sua finitude, abrindo mão do monoteísmo da consciência, mas isso não é tarefa fácil, porque superar os hábitos, enfrentar a sombra e despotencializar os complexos patológicos, por estarem autônomos, exige muito investimento de energia e entrega ao Self, superando as defesas, as auto sabotagens e os autoenganos. Só podemos conhecer o que não conhecemos, porque aquilo que imaginamos conhecer, na realidade atualizada, não conhecemos mais, pela dificuldade de vermos, a nós mesmos ou os outros, atualizados e livres das nossas projeções, identificações e ou idealizações. Por isso, só podemos nos encontrar quando nos perdemos no si mesmo, desaprendendo o que imaginamos ser, para descobrirmos o que somos, ao invés de ficarmos apegados na mesmice do que imaginávamos ser, fixados nas velhas personas, aprendidas e condicionadas, que servem apenas para a manutenção da normopatia adaptativa, conservando-nos na condição de escravos financeiros, aprisionados na dinâmica do consumo, da dívida e do trabalho, sem sentido ou significado existencial.
A liberdade e a diversidade, para a consciência, é simultaneamente tanto uma experiência de redenção, quanto de danação. Porque o Ego, quando perde sua capacidade estruturante de simbolizar e metaforizar, diante das miríades de fenômenos, conteúdos arquetípicos, que são coletivos, e da falta de limites, pode sucumbir, desembocando na esquizofrenia, que representa a desestrutura egóica, ou na normose patológica, com a primazia do Ego super-estruturado, com características narcísicas e ególatras. Em ambos os casos, o Ego perdeu a capacidade de mediar a relação do coletivo com o individual, do singular com o plural, ficando individualista e egoísta, cindindo o corpo da psique, numa atitude polarizada ao negar um em detrimento do outro. Com isso, o Ego não possibilita o afloramento do processo de individuação que, na visão junguiana, exige que ele esteja saudável, que equivale a ser forte e flexível, fazendo oposição ao Ego doente, por oscilar entre a fraqueza desestruturada e a rigidez maníaca ou fundamentalista.
A liberdade depende da capacidade de fazermos escolhas conscientes, levando em consideração nosso inconsciente, e apesar da angústia da tomada da decisão, assumirmos, corajosamente, com quem e como vamos estabelecer nossas relações de dependência e servidão. Sempre conscientes de que ninguém tem o poder de transformar ninguém, mas ninguém se transforma sozinho! É na relação que acontece o confronto com o outro de nós mesmos. Porque a cura depende do contato afetivo (lembrando que cura, neste contexto, significa integridade e consistência). Para isso, é necessário estarmos conscientes de que só podemos dar aquilo que temos, mas jamais iremos receber aquilo que não temos para dar. Por isso, quando estamos recebendo o que não desejamos, é necessário reconhecer que é isso que estamos dando! Essa é a dinâmica da dádiva: dar, receber e retribuir, conscientes de que a dádiva dada de graça é que nos retribui a graça. Desta forma, para que aconteça a transformação efetiva, é necessário a tomada de decisão para a ação de sermos doadores daquilo que esperamos receber.
Como afirmou Jung, parece que existe um tempo, que não é linear ou lógico, por pertencer a Kairós, que depende de uma massa crítica de afetos, emoções e conteúdo, possibilitando que aconteça a prontidão para aplicar e agir aquilo que se sabe e quer. Numa espécie de movimento compensatório, entre consciente e inconsciente, para que o ato da vontade seja hipostasiado em atitudes. Neste sentido, Jung afirma que: “… O segredo do mistério criador, assim como o do livre-arbítrio, é um problema transcendente e não compete à psicologia respondê-lo. Ela pode apenas descrevê-lo. Do mesmo modo, o homem criador também constitui um enigma, cuja solução pode ser proposta de várias maneiras, mas sempre em vão” (Jung, O Espírito na Arte e na Ciência §155). Parece que precisa ter uma espécie de permissão de uma parcela do inconsciente, diferente e, às vezes, até opositiva aos complexos, para que a consciência tome a atitude de produzir sua obra, que equivale a sua arte e seu servir. Mas, como alertavam os antigos alquimistas, todo ser humano é uma artista que precisa servir a obra e, apesar de sua obra poder servir a muitos, devido sua falta de prontidão egóica, pode não servir a ele mesmo e, em alguns casos, até pode destruí-lo.
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Waldemar Magaldi Filho – Psicólogo, especialista em Psicologia Junguiana, Psicossomática e Homeopatia. Mestre e doutor em Ciências da Religião. Autor do livro: “Dinheiro, Saúde e Sagrado”, Ed. Eleva Cultural.