Por Carlos São Paulo
Hermann Hesse, numa de suas crises nervosas da meia idade, procurou um analista junguiano. Em 1919 e sob essa influência, escreveu o romance Demian. Mais tarde ele retomou o seu processo de análise com o próprio Jung. Nessa época, ele escreveu a um amigo que o objetivo da análise é “criar um espaço no qual podemos ouvir a voz de Deus”. Um depressivo crônico, fez da arte literária um meio terapêutico de elaborar suas vivências pessoais. Seus personagens puderam realizar no mundo da ficção o que ele percebia, mas não podia concretizá-lo no mundo real. Hesse morreu aos 85 anos.
Demian, o seu melhor livro, narra a história de Emil Sinclair. Esse personagem, como o autor, era filho de pais que viviam uma grande dose de emoção religiosa. Era de tal maneira, que as dificuldades com a própria natureza humana dentro de cada um de nós ganhavam a forma de um Demônio com existência própria e passava a existir no mundo externo. A obediência era Deus; a desobediência, o Demônio. Como a arte é a desobediência, essa era uma maneira de combater todas as aspirações criativas. Assim Sinclair se depara com a dualidade dos mundos, sem desprezar nenhuma delas, graças à sua dimensão interior que lhe foi revelada no mundo externo na figura de um colega de nome Demian.
Sinclair, que em sua ânsia de ser reconhecido e viver o herói, inventa uma história de roubo de maçãs e se torna vítima de “bulling” praticado por um colega de nome Kromer. A tentativa de ajustar uma persona adequada para esse convívio social termina por deixá-lo vítima dessa condição humana quando uns exercem poder sobre os outros. Os pais de Sinclair, com a ilusão de protegê-lo, mostravam ao filho, um mundo ideal. Mas eles se esqueceram de que é pelo caminho da experimentação, na dose adequada, que ganhamos o amadurecimento da personalidade. Foi com a ajuda de Demian que o menino se libertou do seu opressor.
Quando no convívio social, procuramos ajustar uma persona – a maneira como queremos ser vistos -, temos a intenção de ser amado pelo outro. Mas no momento em que se cria o que se quer mostrar, também se esconde o que se tem vergonha de deixar aparecer. Uma das consequências desse ato é esquecermos que foi uma mentira para impressionar até a quem não conhecemos. Isso nos torna refém do outro e pagamos um alto preço para não sermos denunciados por nós mesmos. É dessa forma que, como Sinclair, ficamos à mercê do caráter explorador do outro. Caráter esse muitas vezes representado pelas grifes, etiquetas e o mundo falso das alegrias. Desse modo mergulhamos nas terríveis viagens da alma, em meio a trevas, sem saber encontrar um sentido para a própria existência.
Nessa obra, Hesse consegue mostrar o “Processo de Individuação”. Um dos conceitos mais importantes da obra junguiana. É nesse processo que se aprende que nem sempre o que é certo é também justo. Max Demian fascina Emil Sinclair. O que nos fascina é encontrar uma dimensão de nós mesmos, confundida com o objeto do fascínio.
Jung define o Si-mesmo como a totalidade de tudo que é do humano: a consciência e o inconsciente; a psique e a matéria. Sua manifestação na consciência é a imagem de Deus (Imago Dei). Demian ensina a Sinclair sobre um deus que se chama Abraxás. Um deus gnóstico. Uma ideia mítica que contém tudo que é da natureza do homem. Esse deus é luz e trevas. É lidar com as sombras que a luz projeta, sem negá-las. É poder chegar à coexistência natural de Deus – o sagrado que não tem a dimensão do tempo, espaço e matéria -, e o Diabo, com as suas dimensões do espaço, tempo e matéria. Esse deus não se opõe a nenhum dos seus pensamentos ou sonhos. É o homem total. Ou nas palavras de Jung “… Existe um deus que vós não conheceis, porque a humanidade esqueceu. Nós o chamamos pelo seu nome, Abraxás. Ele é ainda mais indefinível do que Deus ou Demônio. É uma dimensão da totalidade, pois não exclui nada que pertence a vida. Quando algo de mal lhe surge na mente, algo verdadeiramente insensato e pecaminoso, pensa que é Abraxás quem devaneia assim em teu interior “.
Sinclair separa-se de Demian. Foi para um novo internato. O jovem inicia então uma vida desregrada, piora suas notas e embriaga-se com frequência. Até cruzar com uma garota e se interessar por ela. A partir desse momento, ergue-se uma imagem adorada e venerada como foi Demian e, a partir daí, ele volta a se organizar e a ter disciplina. Deu-lha o nome de Beatrice. Jamais trocou com ela uma palavra, mas ela é o seu encantamento com a vida. É paixão. Ele treina pintar aquela criatura. Surge um rosto imaginário que ele se põe a adorar. Reconheceu que essa era a sua criação e que se apaixonara por uma imagem interior – seu destino ou seu demônio. Ao contemplar a imagem que ele criou de Beatrice, se deu conta ter feito o rosto de Demian. Sinclair, em seu ritual de admirar essa imagem, vê que aquela gravura não era Beatrice, tampouco Demian, mas ele mesmo. Em suas palavras ele define o que para Jung é o conceito de “Anima”: “Não se parecia – e eu sentia que não devia mesmo parecer-se – comigo; mas era o que representava minha vida, meu ser interior, meu destino ou meu demônio. Assim haveria de ser o amigo, se algum dia viesse a encontrar algum. Assim seria minha amante, se viesse a tê-la. Assim seria minha vida e assim seria minha morte; tais eram o som e o ritmo de meu destino.”
Somos seres que nascemos com todos os segredos do universo. É como Pistorius, um personagem que substituiu a ausência de Demian na vida de Sinclair, nos esclarece: Cada homem enquanto vive e cumpre a vontade da natureza é maravilhoso e digno de consideração. O único trabalho importante na vida de uma pessoa, no entanto, é saber/poder encontrar-se.
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Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@carlossaopaulo