A análise junguiana e a medicina contemporânea

“(…) se a autonomia não fosse a nostalgia secreta de muitos, talvez o indivíduo não tivesse condições de sobrevivência moral e espiritualmente à repressão coletiva.” C. G. Jung (2013 §34)

Esta frase de Carl G. Jung traz a reflexão sobre o processo analítico, o terapeuta, em especial um médico, e como ele lida com seus pacientes. Ao estudarmos na Faculdade de Medicina há uma forte tendência à utilização da MBE – Medicina Baseada em Evidências, onde o espírito científico da repetição, das estatísticas, das maiores frequências está presente. “A Medicina Baseada em Evidências adota técnicas oriundas da ciência, engenharia e estatística tais como: meta-revisões da literatura existente (também conhecidas como meta-análises), Análise de risco-benefício, Experimentos clínicos aleatorizados e controlados, Estudos naturalísticos populacionais, dentre outras. Essa medicina luta para que todos os médicos façam “uso consciencioso, explícito e judicioso da melhor evidência atual”, quando fazem decisões em seu trabalho de cuidado individual dos pacientes.” ‘O problema é que muitos pacientes não leem os livros, assim dizemos, quando o quadro clínico e a evolução não estão de acordo com a literatura científica, ou porque o paciente é complexo, envolvendo outras doenças concomitantes chamadas de comorbidades, comum nos indivíduos de idade avançada, ou por idiossincrasias, quando a evolução é especialmente típica naquele sujeito e os profissionais envolvidos não conseguem explicar claramente a causa. Esta abordagem tem sempre em mente um homem médio! “(…) Ele [o médico] está equipado com as verdades estatísticas de sua formação científica e, por outro lado, ele se depara com a tarefa de cuidar de um doente que, principalmente no caso da doença mental, exige uma compreensão individual” (JUNG, 2013, § 497). O tratamento é para um doente e não para a doença abstrata. A descrição da doença está nos livros, já que esta é um conceito, um agregado de sinais e sintomas, porém a realização da mesma se dá em um dado ser biopsicossocial e espiritual. Jung esclarece que “esse conflito não se resolve com uma alternativa exclusiva – ‘ou ou – e sim por uma via dupla do pensamento: fazer uma coisa sem perder a outra de vista” (JUNG, 2013, § 496). A especificidade da arte do profissional é exatamente trabalhar com essa contradição que Jung destacou.

A nossa psique é algo muito especial, algo que não tem precedentes na história da Terra, e ela é a grande responsável por todas as transformações históricas e consequentemente científicas da civilização. Então quando vamos observar a nós mesmos temos um viés na análise. O enigma da consciência ainda está sem solução, é uma perplexidade! Mesmos com os graus variados de inteligência que a escala dos animais tem, seus comportamentos são repetitivos, não criativos! “A consciência é uma condição do ser” (JUNG, 2013, § 528), é como um princípio arquetípico que antecede o indivíduo, mas o portador da mesma é o próprio indivíduo e isso nos coloca como sujeito e como objeto da questão. Erich Neumann (2014) desenvolve uma bela história da origem da consciência através dos mitos da criação, do herói e da transformação em busca da autorrealização ligada à experiência do self.

Essa consciência não está dominada pela Razão. Sentimentos, fantasias e comportamentos vividos como estranhos nos impulsionam no caminho. E assim vamos, de estranhamento em estranhamento vivendo… Vivemos esses eventos como sofrimento ou como prazer, como adaptação ou como novo status, vivemos dentro de um consultório de análise ou na vida! O afastamento dos nossos instintos gera nossos conflitos e neuroses. Jung diz que o instinto tem 2 aspectos fundamentais: o fator dinâmico – a compulsão – e o sentido específico – a intenção (JUNG, 2013, § 556). É como se à nossa capacidade de aprendizagem, tão clara na espécie humana e baseada sobretudo no instinto de imitação (também presente nos animais) tivesse sido acrescentado a criatividade, característica dos humanos. Ambas tem propiciado as modificações das condições de existência, facilitando as adaptações, gerando ciência e tecnologia, mas estas últimas também tem desviado o olhar do homem para o mundo externo, projetando o si-mesmo em tudo isso e assim provocando uma “alienação crescente do homem de sua base instintiva”, (JUNG, 2013, § 557) ou seja, o desenraizamento do instinto pela identificação com o conhecimento consciente de si mesmo ou pela consciência da exclusão do inconsciente. “A separação de sua natureza instintiva leva o homem civilizado ao conflito inevitável entre consciência e inconsciente, entre espírito e natureza, fé e saber” (JUNG, 2013, § 557) que num dado momento pode tornar-se patológica.

Jung usou o estudo da alquimia para abordar no simbolismo do opus alquímico o processo de individuação e que “corresponde ao significado central da transferência no processo psicoterapêutico e nas relações humanas normais” (JUNG, 2012, § 538). É aproveitando esta capacidade humana de projeção que o processo de transferência e contratransferência acontece no site analítico, local onde as falas podem ser acolhidas, tendo este encontro poderes curadores, poder de propiciar o auto encontro, suscitar catarses, gerar diálogo entre os dinâmicas psíquicas do cliente e do analista, amalgamando irracionalidades, soldando fraturas. Todo este encontro entre o terapeuta e o cliente é singular e específico, fugindo das estatísticas, das médias, das generalidades e do coletivo.

Esse processo analítico é revisitado por James Hillman no livro O Mito da Análise (1984) e, ao contextualizar historicamente a emergência deste processo, ele defende que o nascimento da análise se deu junto com a neurose e com o inconsciente numa sociedade protestante, científica, masculina e apolínea e que, portanto, quando essas condições históricas se modificarem, e se caminharem para o erótico, o imaginal e o dionisíaco, não haverá mais sentido para esta tecnologia terapêutica! O homem alcança sua autonomia como uma força nostálgica que o empurra para a Self.

Dra. Maura Selvaggi Soares, Médica, Especialista em Psicologia Junguiana e Analista em Formação no IJEP; mauraselva@gmail.com.

REFERÊNCIAS:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Medicina_baseada_em_evid%C3%AAncias

HILLMAN, James. O Mito da Análise: três ensaios de psicologia arquetípica. Rio de Janeiro: Terra e Paz, 1984.

JUNG, Carl Gustav. Ab-reação, Análise dos Sonhos e Transferência. Petrópolis: Vozes, 2012.

_____ Presente e Futuro. Petrópolis: Vozes, 2013.

NEUMANN, Erich. História da Origem da Consciência, São Paulo: Cultrix, 2014.