O mundo das redes sociais está povoado de pessoas que acreditam que são tão belas, felizes e bem-sucedidas que automaticamente atraem para si a energia negativa dos invejosos. Frases como “aceita que dói menos”, presentes na cultura da ostentação contra os “recalcados” são exemplos da fixação na figura do invejoso. Uma pessoa assim geralmente está inconsciente do fato de que a inveja, na verdade, vem de dentro: a personalidade exuberante daquele que busca estar sempre sob os holofotes esconde por trás de si alguém cuja auto-estima é muito baixa, e assim procura compensar o sentimento de inferioridade através da batalha pela aprovação geral. Alguém dentro de nós sente-se rejeitado, solitário e deseja muito ter a aceitação que o outro tem: é este “invejoso” interno que é visto em toda parte, como se estivesse sempre à espreita.
Segundo Jung, nossa personalidade é feita de opostos: para todo tímido há um desinibido interior – para alguns, basta um pouco de bebida para que o desinibido saia. Em todo bem-sucedido há um fracassado inconsciente que o assombra e o faz lutar pelo sucesso. Para que sejamos únicos, escolhemos uma (ou poucas) entre as inúmeras possibilidades que nossa psique apresenta, e então as desenvolvemos ao máximo, e assim nos destacamos na multidão. O problema é que um grande pensador geralmente acaba abrindo mão do seu sentimento para que torne-se grande, e seu sentimento, pouco desenvolvido, causa-lhe grandes problemas pessoais de relacionamento. Malba Tahan, em seu livro “O Homem que calculava”, relata que os grandes calculistas na história da humanidade, capazes de feitos prodigiosos na matemática, eram pessoas medíocres em tudo o mais. Assim, não é incomum encontrarmos pessoas consideradas famosas, importantes, inteligentes, belas ou talentosas que vivem situações deploráveis em sua vida privada. Estas oposições, no entanto, quase sempre permanecem ocultas das mídias sociais, que visam mostrar sempre nosso melhor ângulo – mas aparecem em profusão nos consultórios de psicoterapia.
A nossa cultura parece ignorar que é impossível investir somente no êxito social sem pagar um caro preço por isso. Ao acreditar que é possível viver apenas o belo, o bem-sucedido e o correto, ignoramos partes da nossa personalidade que guardam o feio, o fracassado e o imoral. Estas subpersonalidades, que aparecem em nossos sonhos como animais ou humanos deformados que nos atacam ou ameaçam, acabarão manifestando-se na nossa vida consciente e causando sérios problemas, caso suas necessidades não sejam levadas em conta. Em momentos como o que vive o estado do Espírito Santo, que passa por uma greve de policiais militares, lembramos da esquecida lição das guerras e dos fascismos que assolaram o século passado: o cidadão comum e ordeiro guarda dentro de si uma besta furiosa, pronta para aterrorizar os seus irmãos assim que for solta. A mesma greve aconteceu na Bahia em 2001 e 2012, com um saldo impressionante de saques e homicídios que só é explicado pelo fato de que muitos cidadãos comuns engrossaram a fileira dos criminosos, quando perceberam que poderiam agir sem punição.
Para Jung, não existe moralidade enquanto ignoramos que a nossa besta interior está simplesmente acorrentada, pronta para sair à primeira oportunidade: nós somos tão evoluídos quanto nosso lado mais sombrio e escondido, somos correntes tão fortes quanto nosso elo mais fraco. Não nos enganemos: enquanto a decisão de não praticar o mal abominável ao próximo for resultado apenas de uma proibição social ou do medo da punição divina, continuaremos tão bárbaros como sempre.
Paulo Nunes
Médico e Pós-graduando em Psicologia Analítica pelo IJBA/FBDC.