A Cidade e as Serras é uma obra de ficção realista que o autor, Eça de Queiroz, deixou inacabada. Coube a Ramalho Ortigão, amigo do escritor, uma contribuição para terminar o romance e publicá-lo em 1901. A história me fez refletir sobre “ser feliz”. A idéia de felicidade é um tema arquetípico. Dizemos assim a todo assunto presente no imaginário popular em diferentes épocas e civilizações. Há quem imagine que com fortuna e sorte a felicidade aparece. Sócrates e outros entendem que é uma tarefa do indivíduo, portanto algo que se pode aprender a tê-la. Ou será como pensou Platão, o objetivo do homem?
A história de Jacinto – o protagonista – é narrada pelo seu amigo Zé Fernandes. Este chama àquele de “meu príncipe”. Jacinto mora em Campos Elíseos, Paris. Além de ter nascido rico, lia muito e aprendia com facilidade. Seu interesse pelos avanços tecnológicos fazia de sua residência um ponto de encontro para exibir os benefícios da civilização. Com a ilusão de uma falsa felicidade, aquela produzida pelo bem-estar enquanto tudo de bom acontece conosco, Jacinto defendia a tese de que o homem só é amplamente feliz, quando amplamente civilizado.
A relação do homem com a felicidade tem interessado cada vez mais aos pesquisadores. Uma dessas pesquisas foi realizada nos EUA, 1985. Consistia em investigar ganhadores de loteria que ficaram ricos da noite para o dia; como também aquelas pessoas que foram vítimas de uma tragédia em que ficaram seqüelados como tetraplégicos. Tal estudo mostrou que, depois de um determinado tempo, passado a fase da grande alegria ou da grande tristeza, os indivíduos voltaram aos índices de felicidade semelhante aos experimentados antes de esses episódios ocorrerem. Assim sendo, não dependeu da tragédia ou da sorte. O que é então ser feliz de forma verdadeira? Ataulfo Alves, compositor e poeta, dizia: “eu era feliz e não sabia”. A história de Jacinto talvez explique a pergunta.
Jacinto, convivendo na civilização parisiense, fez amizades um tanto interesseiras. Dependia de valores sociais mascarados por uma roupagem que corrompia a verdade. Eram relações instrumentais, em que um se utilizava do outro para atender suas necessidades ou alcançar alguns dos seus objetivos. A dimensão espiritual ausente ou não reconhecida foi substituída pelo vazio existencial de uma vida sem sentido que se sustentava por meio do consumismo para impressionar o outro e evitar a dor de ser ignorado. O fiel criado – Grilo – disse a Zé Fernandes que o seu patrão Jacinto sofria de “fartura”.
Entediado e infeliz, Jacinto lia o filósofo pessimista Schopenhauer para diluir o seu infortúnio. Convencido nessa leitura de que o sofrimento era uma lei universal, aliviava-se do peso de sua responsabilidade, uma vez que todos sofrem. Estava a lamentar-se da vida, quando surgiu a necessidade de uma viagem para Tormes, nas serras portuguesas, onde ele herdara extensas terras. Durante o seu deslocamento, perdera as malas e experimentara uma série de desencontros que o obrigara a se despojar da vida exclusivamente “material”. Ficara apenas com a roupa do corpo. Sem os seus instrumentos e na ausência do bem-estar e do prazer criado por eles, Jacinto começou a sair da alienação de si mesmo e do mundo, para vir a se importar com o contexto em sua volta.
Nas serras, Jacinto ouvia o canto das árvores que se deixavam ninar pelos ventos e apoiavam os pássaros em suas canções. O sol, a chuva, as estrelas, tudo o encantava e lhe mostrava algo muito mais misterioso do que as criações científicas do homem. Em Eclesiastes ele aprendeu que bem-aventurados são os que se desapegam dos bens terrestres. Aos 34 anos casou-se com Joaninha, prima de Zé Fernandes, e nasceram os filhos Terezinha e Jacintinho. Era agora feliz por fazer os outros felizes. O que lhe unia às pessoas não era mais o cimento adulterado utilizado em Campos Elíseos. Descobrira os seus melhores valores.
Jung, falando de civilização, afirmou que não pode entrar no mundo absolutamente nada de bem sem contudo produzir o mal correlato. É inegável que a ciência tenha contribuído para o conforto e ampliado o limite de idade do homem, mas também criou o afastamento de um outro aspecto da vida que emerge do mundo das trevas da psique humana – a subjetividade. O que dela nasce torna-se invisível, até que se possa vesti-la com as imagens dos nossos sonhos e fantasias. São essas figuras da imaginação que se as entendermos, nos deixa mais auto conscientes. E assim se consegue a serenidade, a compreensão e o equilíbrio, para sermos capazes de sacrificar os impulsos que nos leva ao estado ingênuo do prazer imediato.
Jacinto investiu nas condições básicas de subsistência dos seus agregados, tais como alimentação e o direito aos cuidados com a saúde. Para ser feliz, ninguém precisa mais de dinheiro do que o necessário para promover essas condições. Descobrindo-se simples, agarrou-se à sua felicidade de estar com o outro pelo prazer e satisfação de tê-lo como presença. Nenhum apetrecho tecnológico era ostentado apenas para impressionar. Isso agora servia para atender às suas necessidades de humanização.