O interesse em escrever sobre o tema nasceu da crescente demanda por ajuda de indivíduos profundamente adoecidos, que tiveram como gatilho do mal estar o trabalho. Seja pelas relações abusivas entre patrões e empregados, pela sobrecarga ou simplesmente pela ausência de sentido na atividade profissional, cada vez mais o que deveria ser fonte de crescimento e significado se torna cenário de terror. O trabalho retorna a raiz etimológica da palavra: tripalium, instrumento de tortura, de dor e subjugação. Diferente de lavoro, o trabalho rural de subsistência, no qual todos têm a mesma importância e o resultado é compartilhado.(1) Laborar é alimentar a alma, trabalhar é fustigá-la.
Explosão é o que define – burn out. Coisa de gente que lida com gente. Sintomas mais frequentes entre quem lida diretamente com as dores humanas. Esticam-se emoções até as fibras se romperem. Sempre cabem mais horas, disponibilidade obrigatória para o outro, muito além do aceitável. Exaustão, despersonalização e insatisfação profissional é a tríade fria(2), quase uma sentença. Situação extrema, a enantiodromia do profissional dedicado, traduzida na impossibilidade de realizar trocas relacionais saudáveis.
A maldição do excesso é a paralisia, e essa imobilidade é combustível perigosamente inflamável. Parados e impotentes, verdes de raiva, ideais explodem. Liberta-se o monstro verde, o Incrível Hulk carregado de ira e desespero. Sucesso nos quadrinhos Marvel a partir dos anos 60 e na TV nos anos 70 e 80, o herói criado por Stan Lee e Jack Kirby(3) não tolerava frustrações, fugia do descontrole e do desequilíbrio. Por mais que o monstrengo tivesse potencial e, efetivamente fosse útil, consistia na sombra assustadora do tímido cientista Bruce Banner que, sem saber se relacionar com a força despertada, temia pelas consequências daquilo que não podia dominar.
O esgotamento emocional pelo trabalho consome os filtros das personas, como o acidente com radiação gama, libera forças negadas e ocultas, produz Hulks. A sombra pode ser preciosa em possibilidades escondidas(4). Assim, o quão valioso pode ser o conhecimento da intensidade da raiva, da impulsividade e das explosões? Se aproveitada em prol da individuação e do desenvolvimento planetário, o quanto tanta energia pode fazer? Para transformar sintomas em molas propulsoras da vida, talvez os heróis verdes e irritados devessem conversar com um personagem bem mais antigo. Os conselhos do malfadado Sísifo seriam úteis.
Sísifo foi rei de Corinto, considerado astuto, conseguiu ludibriar e derrotar vários deuses e, até mesmo, aprisionar a morte(5). Porém, ao subestimar o poder de forças arquetípicas, sem compreendê-las, foi condenado a uma eternidade de sofrimento. Em cada manhã, deveria carregar uma pedra grande e pesada montanha acima, só para ver a mesma rolar de volta, buscá-la e repetir a tarefa incessantemente. Energia gasta num esforço inútil. Padecimento que teria sido evitado se, em vez de tentar rivalizar com os deuses, tivesse aceito a própria humanidade, com suas limitações e beleza pálida, sem artifícios traiçoeiros.
De certa forma, homens e mulheres modernos se transformam em Hulks esgotados e animalizados, porque primeiro se permitiram a condenação sisífica. Mas, se o astuto personagem grego pudesse conversar com o cientista instável e assustado dentro de cada trabalhador vencido, o faria desconfiar do do segundo e terceiro empregos aceitos pelo dinheiro ou pela dificuldade de dizer não, ensinaria a desligar o telefone celular nos momentos de descanso e a valorizar a multiplicidade da vida, para além da atividade profissional. Faria o homem compreender que não é um deus. Falaria com a autoridade de quem sofre as consequências da própria soberba.
A condenação acontece quando o tórax aperta ao pensar no retorno ao ambiente de trabalho. Talvez o sofrido rei aconselhasse Bruce Banner a aceitar o gigante, sentir sua vitalidade, conversar com a raiva que o cega, para que, a partir de então, pudessem estabelecer parceria. A desgraça do cientista não foi o raio gama, mas o medo de encarar a fera dentro de si mesmo.
Por sua vez, nesse improvável encontro, o herói da Marvel também teria algo a dizer para o infeliz personagem mitológico. Na maldita repetição, nenhuma conclusão racional pode salvar do sofrimento. Mesmo que Sísifo saiba, que tenha aprendido a não ludibriar, o Olimpo se mantém mudo. Seriam os Deuses assim tão injustos?
E se a salvação estivesse o tempo todo implícita no castigo? E se bastasse se jogar da montanha com fé, mergulhar no desconhecido com os olhos fechados sem saber o que virá, apenas por sentir a necessidade de transformação? Os deuses podem ter um senso de humor terrível! Sísifo fugiu da morte e viveu como morto em sua danação. Hulk jamais passaria por isso. Em sua irracionalidade, teria partido a pedra em mil pedaços e saltado no abismo num ato de coragem desenfreada. Ao trabalhador massacrado, sisífico, que não vê saída além do inferno dos dias iguais e já desistiu de si mesmo, Hulk mostra que a morte, como metáfora da transformação, é necessária para que a vida flua. Muitas vezes, é preciso deixar ruir a torre da estabilidade e da segurança para que a saúde seja recuperada.
O sofrimento contém a cura dentro de sua carapaça dura. A rebeldia de saber que a trajetória pode ser diferente, com estratégia, força e busca por significado dá sentido ao grito do herói verde e tem poder de romper essa barreira. Na conversa entre a aceitação passiva de um destino de torturas e a ira em seu estado bruto, surge a terceira via, acenando com possibilidades criativas e alívio de feridas. Através dela, o Olimpo sussurra suas bênçãos, equivalente a ativação da função transcendente da psicologia analítica!
Marissol Lourenço Hermann Teixeira, Analista Junguiana em Formação do IJEP, Médica Psiquiatra.
Telefones: (61) 99151-0364; (61) 3711-1414
E-mail: marissol.psiquiatria@gmail.com
1 BONZATTO, Eduardo Antõnio. TRIPALIUM: O trabalho como maldição, como crime e como punição https://www.unifia.edu.br/revista_eletronica/revistas/direito_foco/artigos/ano2011/Direito_em_foco_Tripalium.pdf acessado em 15/11/2017
2 TRIGO, T.R. et al. Síndrome de burnout ou estafa profissional e os transtornos psiquiátricos. Rev. Psiq. Clín 34 (5); 223-233, 2007
3 “Como surgiu a ideia de criar o Hulk” ( https://radiacaogama.blogspot.com.br/2011/11/como-surgiu-ideia-de-criar-o-hulk.html) acessado em 15/11/2017
4 ZEWIG, Connie e ABRAMS, Jeremiah. O lado da sombra na vida cotidiana. In Ao Encontro da Sombra. ZEWIG, Connie e ABRAMS, Jeremiah. Pg 17. Ed. Cultrix. São Paulo.
5 Sísifo- Mitologia Grega https://www.portalsaofrancisco.com.br/historia-geral/sisifo acessado em 15/11/2017
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