A desobediência de Oiá

Por Carlos São Paulo

Durante a escravidão, a individualidade, a liberdade e a independência dos negros foram usurpadas. Sem força para se libertar das correntes impostas, eles se viram acorrentados, reféns de um destino implacável, à mercê de forças que pareciam divinas, o que fragilizou sua essência.

Dessa herança de dor e resistência, herdamos a religião dos povos Iorubás, que agora habita nossa alma e molda nossa psique. Como analistas junguianos, nosso objetivo não é ‘consertar’ o cliente, mas facilitar o encontro de sua consciência com a essência de sua própria alma, onde essa religião reside como arquétipos profundos.

Os mitos, assim como os sonhos, são expressões desses arquétipos. Por exemplo, o mito de Oiá, que criou um rio para proteger seu povo, penetra em nossa essência. O rei dos nupés, percebendo que seu povo estava em perigo e precisava de proteção, consultou o Ifá. Este oráculo sugeriu que oferecesse uma peça de tecido negro, a ser rasgada por uma virgem. O rei escolheu sua filha, Oiá, para o ritual.

Oiá foi aconselhada a não voltar à sua terra natal enquanto estivesse com seu marido Xangô e o amasse. Dividida entre a obediência e o amor, ela desobedeceu e voltou, apenas para receber a notícia da morte de Xangô. A desobediência, a exemplo do mito do paraíso, marca a dolorosa tomada de consciência do fim da inocência infantil, deixando Oiá dividida entre o amor pelo pai e por Xangô.

Esses mitos, entrelaçados no imaginário coletivo, confrontam-nos com seu caráter misterioso e linguagem ancestral. Ao decifrá-los, revelamos significados ocultos da existência, refletindo nossas raízes e futuro, como a mitologia dos orixás. Oiá simboliza uma notável transformação espiritual, desobedecendo a decisão de não retornar, uma decisão movida por amor e insubordinação.

Com a morte de Xangô, Oiá se transformou no rio Níger, um símbolo de proteção e carinho pelo seu povo. Essa capacidade de transformar um objeto comum em algo extraordinário nos inspira a refletir sobre as transformações possíveis em nossas vidas. As revelações, principalmente as alcançadas durante a psicoterapia, podem se tornar poderosas fontes de força e cura. Frequentemente, são as iniciativas modestas que antecedem grandes transformações.

Confrontada com a morte de Xangô, Oiá experimentou amor, perda e renascimento. O rio, com seu fluxo constante, simboliza nossa jornada emocional através do luto, transformando a dor em uma nova existência que nos acompanha. A história de Oiá nos inspira a refletir sobre nossas decisões, a nos abrir para as mudanças da vida e a nos preocuparmos com nossa capacidade de criar segurança e transformação. Diante da complexidade dos laços emocionais e familiares, percebemos que possuímos a força de um rio, capaz de separar ou unir, destruir ou nutrir.

No mundo real, o rio Níger é uma fonte vital de vida e fertilidade para os Iorubás da Nigéria e do sul de Benin, sustentando uma rica cultura e religião que valoriza a harmonia com a natureza e o respeito aos ancestrais.

¹.  Os povos nupés, vivem na região sudoeste da Nigéria e no sul de Benin

Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br