A Estranha História do Dr. Jekyll e Mr. Hyde

Por Carlos São Paulo

Há momentos em que, no ventre agonizante da consciência, nasce um sentimento que contraria a ideia de existirmos como um ser de uma única personalidade. Esse sentimento aparece quando nos perguntamos: quem em mim atuou dessa maneira que me envergonha? No encanto da leitura de um clássico da literatura O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, percebi uma ficção que conta toda a verdade sobre nós mesmos.

No contexto histórico da era vitoriana, período marcado pelo moralismo puritano, importava muito ter uma imagem que correspondesse ao ideal daquela sociedade. Foi nesse período que Robert Louis Stevenson escreveu essa novela e publicou em 1886. Dr. Jekyll era um personagem desejoso de respeitabilidade e tradicionalismo. Ele caminhou tanto por um dos extremos de sua natureza que, essa escolha unilateral, o levou a repelir tudo que estivesse em oposição a esse caminho. Em consequência criou, com tudo que foi sobrepujado, uma forma oculta “hide” de ser e o chamou de Mr. Hyde.

Stevenson relata em sua história que o Dr. Jekyll, ao reconhecer sua dualidade e sentir um “Outro” contido a se debater, se deu conta de um corpo fraco para conter as energias enfurecidas da vida. Resolve então trabalhar para conseguir uma substância química para que cada uma dessas personalidades pudesse morar em corpos separados. Foi a maneira que imaginou poder conciliar sua vontade de continuar a ser respeitado e estimado, com esse “Outro” escondido em si mesmo e com vontades moralmente feias. Esse “Outro” era o inconsciente causando turbulência na consciência.

O inconsciente coloca uma coisa no lugar de outra, essa é sua forma de funcionar; assim como a consciência separa uma mesma realidade em opostos irreconciliáveis. É como aquela porta que de um lado está escrito “entrada” e do outro “saída”; mas é a mesma porta. Não podemos enxergar sem luz e sombra. A consciência divide a natureza do homem em regiões do bem e do mal e coloca cada coisa com sua característica singular; enquanto o inconsciente engana, confunde, coloca uma coisa no lugar de outra e agrupa os produtos psíquicos, por suas semelhanças, para formar categorias. Suas manifestações, portanto, não têm a lógica da consciência.

Se algo nos afeta, entusiasma e tem forças sobre nós, eis ai uma de nossas personalidades buscando um meio de conversar conosco. No entanto, se nosso receio é de não atender ao que julgamos ser o belo para o outro, então cavamos um fosso profundo entre tudo isso que somos nós. E, como o Abel e Caim em nossas entranhas, o nosso eu quer favorecer um em detrimento do outro. Dessa forma provocamos um abismo entre os dois e corremos o risco de destruir o verdadeiramente belo.

Dr. Jekyll conseguiu a fórmula química que procurava. Esta, ao ser ingerida, o fez sofrer a metamorfose que o transformou em Mr. Hyde. Este era mais jovem, tinha uma menor estatura e feições aterrorizantes. Ao tomar o produto novamente, voltava a ser Dr. Jekyll. Dessa forma ele passou a viver um e outro, como indivíduos separados, até ser vencido pelo Mr. Hyde e por fim à sua vida.

Diz Stevenson: “A droga não agia de forma discriminatória; ela não era nem divina, nem diabólica; apenas balançava as portas da prisão de meu caráter.”. A palavra diabo é aquilo que desune. Na nossa dualidade, para unirmos essas partes em discórdia, necessitamos de “símbolos”. Essa palavra mostra a carga afetiva envolvida e a torna maior do que aquilo que é mostrado.

No processo da psicoterapia associada à psicofarmacologia, devemos considerar os símbolos nos dois recursos: aqueles que participam na formação do que chamamos de “complexos”; quanto o saber que o remédio prescrito, além do seu efeito químico, carrega a sua eficácia simbólica.

Jung define “complexos” como dotados de tensão ou energia próprias, com tendência de formarem, também por conta própria, uma pequena personalidade. Daí o Mr. Hyde aparecer com menor estatura (pequena personalidade) e mais jovem, pois o complexo começa a se organizar tempos depois que o sujeito nasceu e teve suas experiências do desenvolvimento.

A psicofarmacologia moderna tem como ajuda conter as emoções inapropriadas e facilitar o trabalho da psicoterapia em aproximar esses nossos lados inimigos, para nos tornarmos “in-­‐divíduo”.

Stevenson narrando como Dr. Jekyll escreve: “que o homem, verdadeiramente, não é único, mas, de fato, dois. Eu digo dois, pois o estado do meu próprio conhecimento não passa desse ponto. Outros seguirão… e arrisco em dizer que o homem será, no final das contas, conhecido por uma mera constituição de habitantes de múltiplas formas, incongruentes e independentes.” Assim tudo depende de um “Eu” como regente da consciência para governar essa população e fazer justiça como o rei Salomão.

Como diz a física e a psicologia: tudo está conectado. Cada um de nós possui várias personalidades que precisam se relacionar entre si sob a regência de um “Eu” bem fortalecido e, ao mesmo tempo, aberto para interagir com o cosmo. Nosso juiz interior não deverá ser cooptado pelos símbolos da nossa sociedade, em detrimento do respeito à própria natureza e aos talentos presenteados pelos deuses. Só assim poderemos alcançar a condição de respeito à nossa singularidade na pluralidade do todo e finalmente nos sentirmos “in- divíduo”.

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Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br