Entender a complexidade do feminino e suas transformações com o passar do tempo é tema de inquietações, estudos e investigações. Questão ampla, que envolve insatisfações das mulheres reproduzidas no corpo, na família, no trabalho, na sociedade, nas relações afetivas. No consultório da clínica junguiana, aparecem em forma de queixas sobre a multiplicidade de papéis que elas exercem, principalmente após o casamento, o nascimento e o crescimento dos filhos, associadas à dificuldade em estabelecerem e manterem relações afetivas duradouras, resultando no aumento significativo de doenças psicossomáticas e crises existenciais.
Desde as concepções dos filósofos gregos, assim como no pensamento patriarcal tradicional, a mulher foi sendo constituída como fruto das relações sociais, que habitam na alma coletiva e universal em forma de modelos de vida, imagens, ideias, desejos e mitos, vistos nas obras culturais da antiguidade, transmitidos por várias gerações, sempre reforçando a desigualdade hierárquica, ainda impactando os padrões culturais atuais. De algum modo, tais questões favorecem uma ampliação sobre a evolução do feminino e a imagem arquetípica do animus, buscando conexão com a analogia de Khronos e Kairós, que possuem relação direta com o tempo, mas de maneiras distintas. Na mitologia grega, Khronos é o tempo sequencial, cronológico e que se mede. Em contrapartida, Kairós, simboliza o tempo não mensurado, mais a ver com qualidade, com valores do momento presente. O grande desafio é estabelecer relação harmoniosa entre os dois, para favorecer a transformação deste padrão cultural ainda desfavorável à mulher.
De uma forma geral, buscando o entendimento da complexidade do tempo de Kairós na evolução do feminino, Jung e autores junguianos definem complexo como um aglomerado de associações, com estrutura arquetípica, carregada de imagens e sensações, marcado por afeto e emoção e com função auto reguladora da psique. O complexo paterno, presente e necessário em todos os seres humanos, surge a partir de afetos constelados na relação do animus da mãe e, posteriormente, com o pai real e as figuras representativas do patriarcado e suas imagens arquetípicas primordiais (figuras do herói, do monstro, do velho sábio, do professor, do ladrão, entre outros) que vão se juntando a mais afetos por meio das vivências. O complexo paterno, na mulher, tem um referencial masculino vinculado a ele, e o seu animus será a expressão desse complexo. Pode ter um caráter traumático, doloroso ou possibilitar harmonia nas relações.
Neste sentido, trago a contribuição de Magaldi Filho (2009), com reflexões sobre os diferentes estágios de desenvolvimento que envolvem o animus e o ciclo feminino (metaforicamente representado por Lilith/Eva, Maria, Helena e Sofia), com um correspondente masculino que é projetado nas suas relações: Eva e o mito do herói (proteção e salvação da mulher); Maria e mito do pai (condução e controle); Helena e o mito do filho (ser cuidado), por último Sofia e o sábio (integração dos outros aspectos). De algum modo, é o que o feminino projeta no masculino, podendo resultar em satisfação ou adoecimento. Para ampliar este entendimento, no homem o desenvolvimento da Anima também compreende quatro estágios e de alguma forma é o que masculino busca na relação com o feminino. O primeiro estágio é simbolizado por Lilith/Eva, que representa o relacionamento instintivo, sexual e biológico. O segundo está mais ligado ao amor, à devoção espiritual e à maternidade, simbolizado pela Virgem Maria. O terceiro por Helena, uma musa inspiradora e a que vai para a batalha junto com ele. O quarto, e último estágio, refere-se à sabedoria que transcende, Sofia. De acordo com estudos, Lilith, foi a primeira mulher de Adão, que não se deixou subjugar por ele, desobedeceu e foi expulsa do Paraíso, transgredindo o masculino. Eva foi criada a partir da costela de Adão, seduziu o masculino e o convidou o para adquirir conhecimento, desobedecendo a proibição do criador. Lilith e Eva passaram a fazer parte do inconsciente do Adão, sua anima.
Vindo ao encontro com o tempo de Khronos e o ciclo de Lilith/Eva em que se busca a experiência estética, sensorial de prazer, percebemos que as questões da sexualidade feminina e os arranjos conjugais têm raízes firmadas na história, as suas modificações ocorrem no interior da própria sociedade, alterando mentalidades e padrões culturais, o que permite diferentes maneiras de viver. Neste cenário a mulher Lilith/Eva, deixa espaço para entrada de Maria, boa mãe, protetora, assexuada e transformada em santa que cuida do lar. Na dimensão do tempo Khronos, mesmo com o passar do tempo, a maternidade é naturalizada como um mito do amor incondicional enraizado. Percebe-se também, que a evolução social e política permitiu que a religião decidisse o que era bom. Com isso, a mulher se sente presa, sem direito ao prazer, surgindo o primeiro sintoma psiquiátrico – a histeria – e nasce o ciclo de Helena, a mulher que está junto para o que der e vier, que vai para o trabalho, porém precisa continuar com aspectos relacionados aos ciclos anteriores.
A inserção social das mulheres em diferentes culturas patriarcais permitiu diferentes visões e causou frustrações. A participação delas nas atividades públicas e a conquista de direitos formais desafiaram a hierarquia sexual moderna e atingiram a família. Neste sentido, Clarice Lispector trouxe um pouco do seu modo de dominar o universo feminino: “Eu antes era uma mulher que sabia distinguir as coisas quando as via. Mas agora cometi o erro grave de pensar” (LISPECTOR, 1943). Além disso, em seu último livro traduziu em poucas palavras a sua experiência de ser mulher: “Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome” (LISPECTOR, 1999). Nas palavras da autora, ficou evidente a sede pelo do tempo de Kairós, com transformações profundas, movimento que envolveu ganho de espaço, objetivando que a dimensão ética seja incluída na realidade cotidiana.
O surgimento da pílula anticoncepcional foi um marco, uma possibilidade de escolher com mais liberdade entre ter filhos ou não. As técnicas de fertilização e do planejamento genético, com os métodos de prevenção de doenças e gravidez indesejada, possibilitaram avanços na sexualidade. Papéis sociais que estavam restritos aos homens, como de provedor financeiro da família, passou a ser exercido também pelas mulheres, porém, ainda hoje, a remuneração feminina continua sendo inferior à masculina. Em termos gerais, há maior participação masculina nos afazeres da casa, especialmente nos cuidados com os filhos e também há maior investimento em boa formação acadêmica por parte das mulheres para alcançarem melhores oportunidades no mercado de trabalho, no entanto a dupla jornada constitui a origem de conflitos. O avanço tecnológico e científico trouxe imagens e regras de uma sociedade consumista e imediatista, com padrões de beleza e consciência corporal deturpada, sedimentados na juventude e na fertilidade, que podem se reverter em baixa autoestima e influenciar diretamente em todos os aspectos da sua vida. Nota-se que perseguições às mulheres continuam, que lembram a idade média, com seus manuais de inquisição das bruxas. A mulher muda, agrada, acolhe e, sem querer, acaba dando ao homem a sensação de invasão. O homem, após a medo de ser invadido e perder o “poder”, agride e evade-se. Desta forma, inicia um processo de insatisfação e as dores da alma muitas vezes são expressas no corpo de ambos, cada um com seus sintomas de adoecimento.
Na evolução do feminino, a emoção ocupa espaço importante, pois o processo de adoecer pode ocorrer em função da fuga de conflitos, da incapacidade de exprimir emoções, de ganhar atenção e cuidados especiais. Existe um saber do coração que dá esclarecimentos mais profundos. Jung, nesta sábia frase, amplia isso: “Poderás conseguir este saber vivendo plenamente tua vida. Tu vives plenamente quando vives aquilo que nunca viveste, mas sempre deixaste para que os outros o vivessem e pensassem” (JUNG, 2016, p. 121). Nesta relação de prazer, de trabalho e doação, foi necessário acontecer a simbolização metafórica, para que o feminino pudesse transitar no mundo masculino e, com isso, surgiu a relativização da vida e, consequentemente, temáticas esquizofrênicas, com a proximidade dos opostos. Estar consciente do seu animus é muito diferente de ser tomado por ele, negar o feminino e assumir papéis masculinos. Neste sentido, quanto mais consciente a mulher estiver do seu animus, tanto mais pode se relacionar de maneira harmônica e exercer a multiplicidade de papéis, sem adoecimento e transformá-los em elemento positivo, com espaço para expressar sua criatividade, para inovar e lançar-se na vida corajosamente.
Seguindo estas reflexões, com o passar do tempo o mundo começou a aceitar essa realidade ambivalente da mulher, que parecia esquizofrênica, e também que existem mistérios que não damos conta. Com isso, surgiu a terceira doença: a depressão. Na obra junguiana, fica implícito a ideia de que a depressão é parecida com uma mulher que se veste de preto e quando ela aparecer, devemos convidá-la para entrar, oferecer-lhe um assento, tratá-la como convidada e ouvir o que ela tem a dizer. Em outras palavras, é necessário compreender o processo individual da depressão e lhe atribuir um significado simbólico. Diante de tanta transformação aparece outra mulher: a Sofia. Ela representa a sabedoria que vai integrar, transitar e lidar de forma harmoniosa com o bom, o belo e o verdadeiro nos três aspectos que a antecederam. E, para exaltar a beleza da mulher, Jorge Vercillo, nos presenteia com a música “Ela Une Todas As Coisas”, com sentido e significado: “… ela une as quatro estações, une dois caminhos num só…”. Buscando a ampliação, metaforicamente as quatro estações podem representar a integração dos quatro ciclos do feminino: Lilith/Eva, Maria, Helena e Sofia. Mistura de sensação, sentimento, pensamento e intuição! De forma idêntica, “une dois caminhos num só” pode simbolizar o percurso do feminino na diferenciação e integração dos opostos: coletivo com o individual e de Khronos com Kairós, resultando em evolução.
Por fim, mesmo com o passar dos anos, ainda vivemos na ilusão do tempo de Khronos, que nos dá a sensação de que o tempo escorre pelas mãos. Para o alcance da evolução criativa, com a inclusão da mulher e do princípio feminino, uma das possibilidades é romper com o patriarcado que explica, define e reduz às causas materiais, entregar-se ao tempo de Kairós e transitar com harmonia nas dimensões corpo, alma, mente e espírito, para o alcance da alteridade, que apresenta a dinâmica de entender, de ampliar e de encontrar saídas criativas, como o útero – sagrado recinto da gestação de todos os homens – que envolve, compreende e transcende o individual.
Leituras de apoio:
DEL PRIORE, M. História das Mulheres do Brasil. São Paulo: Contexto, 2001.
JUNG, C. G. O Livro Vermelho – Liber Novus: edição sem ilustrações. 2ª Reimpressão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.
JUNG, C. G. O Homem e Seus Símbolos. 3ª edição – Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2016.
JUNG, Ema. Animus e Anima. São Paulo: Cultrix, 2006.
LISPECTOR, Clarice: Perto do Coração Selvagem: Rio de Janeiro: A Noite Editora, 1943.
LISPECTOR, Clarice. Um Sopro de Vida: Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
MAGALDI FILHO, Waldemar. Dinheiro, saúde e sagrado: interfaces culturais, econômicas e religiosas à luz da psicologia analítica. 2ª edição – São Paulo: Eleva Cultural, 2009.
Claci Maria Strieder, Pedagoga, Psicóloga, Especialista em Psicossomática e Analista Junguiana em formação pelo IJEP. Brasília/DF – Contato: (61) 99951.0003 – clacims@gmail.com