Na sua odisseia para retornar a Ítaca, após dez anos de sangrentas batalhas em Troia, quis a fortuna que Ulisses aportasse na paradisíaca ilha de Calipso, deusa encantadora que se apaixona intensamente por ele e decide mantê-lo como amante. Apesar de todos os atrativos que lhes são disponibilizados durante muitos anos pela sublime deusa, Ulisses não consegue se desvencilhar das raízes que lhe conectam com suas origens, sentindo-se fora do mundo e fora do tempo e sendo frequentemente invadido por um estado de profunda melancolia.
Penalizada pelo desespero desse herói em sua jornada, Atena resolve intervir e pede a Zeus, pai dessa deusa da inteligência, que envie Hermes, o deus mensageiro, para obrigar Calipso a deixar Ulisses regressar ao seu lugar natural. Mesmo sob intervenção olímpica, Calipso ainda trama uma última artimanha e oferece a Ulisses a condição de eterna juventude e imortalidade caso concorde em permanecer na ilha.
Porém, para aceitar a tentadora proposta de Calipso, Ulisses teria que pagar o seu preço: esquecer suas origens, continuar escondido – Kalyspsó deriva do verbo grego Kalýptein, “esconder” – e deixar de cumprir o que lhe está destinado como o “herói do regresso” – aquele que suportou todos os sofrimentos para voltar e encontrar-se consigo mesmo.
No zeitgeist da mentalidade grega clássica, o cerne dessa proposta que elevaria Ulisses ao nível dos “bem-aventurados” (deuses imortais) não é a imortalidade, mas a imortalidade anônima – assim o nome do herói não seria por ninguém proclamado e sua glória por nenhum poeta cantada, assemelhando-o aos mortos do Hades (mundo subterrâneo) – chamados “sem-nome” por terem perdido sua identidade. Ulisses esquiva-se do ardil arquitetado por Calipso e decide continuar sua jornada de retorno para casa, fazendo assim uma opção pela existência mortal que o possibilitará ser ele mesmo e buscar a glorificação em vida.
Podemos interpretar na recusa de Ulisses à tentação de Calipso a mensagem fundamental da mitologia grega, desenvolvida posteriormente pela filosofia: o objetivo da nossa vida é buscar uma plenitude possível na nossa condição de mortalidade, ou seja, na condição daquilo que verdadeiramente somos. Para Ulisses, a vida imortal deslocada da essência de sua natureza pessoal (“longe de casa”) e, consequentemente, em desarmonia com a ordem natural do universo, seria uma vida inautêntica – a própria morte em vida.
Para um melhor entendimento do tema central deste artigo, necessitamos discorrer antecipadamente sobre dois pressupostos basilares:
1) Existe uma “sabedoria do mundo”, conceito antecipado por importantes pensadores clássicos (Parmênides, Platão, Aristóteles) e que culmina com a proposição da filosofia estoica de que a ordem natural é o mais perfeito artifício do universo que, na sua divindade, é harmonioso e justo. Seria então nosso papel inalienável como protagonistas dessa ordem cósmica buscar preservar a sua integridade, o que inclui fundamentalmente encontrarmos o nosso lugar na mesma, resguardando a nossa própria natureza; e
2) Somos constantemente levados a cair na tentação de aceitar a “imortalidade” (vida inautêntica) proposta por Calipso que aqui personifica a hýbris – descomedimento de vidas humanas que se desenvolvem em desarmonia com a ordem cósmica. Nessa condição, passamos a experienciar uma vida sem sentido, entorpecidos pela tentação da riqueza material, do poder e da fama, afastando-nos pecaminosamente da nossa verdadeira essência.
A Ordem Cósmica
A vida em harmonia com a ordem cósmica, em que cada um tem reservado o seu “lugar natural”, é a essência da verdadeira sabedoria. A constatação de que o universo é constituído por um grau de ordenamento supremo (kósmos primitivamente em grego significava ordem, harmonia, sábia organização) nos é transmitida de forma simbólica pela mitologia e de forma conceitual pela filosofia clássica através da maioria dos pensadores gregos.
Novamente a mitologia grega nos conta que a construção do cosmos, ou o desenvolvimento de uma ordem harmoniosa que se torna a regra do mundo, foi empreendida através das guerras que Zeus deflagrou contra as forças do caos (forças primitivas próximas do Caos inicial, da total desordem), impondo as forças da ordem pela vitória alcançada em sua disputa com os Titãs, Tífon e os Gigantes.
Na organização do cosmos, o rei dos deuses faz uso da mais estrita justiça na distribuição de atribuições e poder entre todos os outros deuses que lhe foram leais nessa batalha travada contra as forças da desordem. Salienta-se aqui que o objetivo maior de Zeus era desenvolver e manter uma ordem cósmica esplendidamente bem-organizada e justa, pois apenas uma ordem justa seria exequível. Esse último ponto é fundamental na mitologia grega que embute a ética de que “só se consegue vencer ao lado da justiça”.
A vida plena então seria aquela em harmonia com a ordem cósmica, contemplando uma existência “justa” – aqui entendida primordialmente como “justeza”, ou seja, estar alinhado com o ordenamento natural do todo. Essa proposição poderia ser tida como a lei fundamental do universo.
A Hýbris Como Pecado
Os gregos demonstravam um grande temor de serem possuídos pela hýbris, termo que na sua aplicação original significava um estado de deliberada violência ou paixão decorrente do orgulho sobrepujante – inflação, em termos psicológicos. Pode-se ainda considerar diversas outras facetas correlatas incorporadas ao conceito primevo de hýbris como arrogância, insolência, descomedimento.
Numa perspectiva transcendental, hýbris é o não reconhecer a distinção entre o que é humano e o que é divino, entre o que é permitido ao plano humano da consciência e o que permanece como território exclusivo dos deuses. Assim, hýbris constitui uma expressão da arrogância humana que apropria ao homem o que pertence aos deuses (apropria ao ego o que pertence ao nível transpessoal da psique). Em suma, hýbris seria a ultrapassagem dos limites próprios do homem.
Há, no entanto, uma faceta específica do conceito de hýbris que é muito pouco explorada na modernidade pelo pensamento especializado e que é de particular relevância para o argumento aqui construído: a conotação de hýbris como “pecado”- obviamente que a conotação de “pecado” no pensamento clássico se diferencia do desenvolvido posteriormente com julgamento moral pela teologia cristã. A hýbris seria um pecado decorrente de uma vaidade inflacionada que se arroga capacidades que não possui ou decorrente de um julgamento equivocado.
A língua grega tinha, além de “hýbris”, inúmeras palavras com a conotação de “pecado” – como se pode atestar no Novo Testamento, escrito originalmente em grego – sendo outra entre as mais importantes “harmartia” que também significa “errar o alvo” (“cometer um engano”). Podemos então, por extensão, emparelhar os significados relacionados com “pecado” para conjecturar que “ao errarmos o alvo em relação ao sentido das nossas vidas (hamartia), cometemos um pecado contra a ordem cósmica” (hýbris).
A Penitência Expiatória
Da mesma forma que todo pecado na mitologia, a hýbris tem suas próprias consequências deletérias como expiação. Diversos mitos gregos (Íxion, Belerofonte, Cassiopeia, Asclépio, Sísifo, Midas, Tântalo, Ícaro) retratam situações em que seus personagens se rebelam contra a ordem cósmica, sendo assim duramente penalizados pela “injustiça” cometida. Nesse contexto, “justiça” é simplesmente uma forma de se manter a divina organização do mundo, e toda vez que alguém procede à “injusteza” há uma retaliação do Olimpo sob a anuência do senhor do universo.
Se na segunda fase da vida continuamos a buscar respostas para a questão pessoal “O que o mundo pede de mim” ao invés de para “O que a alma pede de mim”; se no lugar de procurarmos pistas para a questão “Eu sou chamado a servir a quê?” (“Qual é o meu vocatus – minha convocação interna?”), continuamos a perseguir a trilha que poderá nos prover de sucesso pleno e satisfazer nossa concupiscência desenfreada, estaremos pecando contra a ordem cósmica por não sabermos guardar nosso lugar no meio do universo.
Estaremos de certa forma vivenciando o mitologema faustiano, temática do mito central da mente moderna, ao vendermos nossa alma à Mefistófeles que, nas letras de Goethe, assim se refere a Fausto: “…do céu ele cobra a mais distante estrela, e da terra todos os prazeres que melhor lhe sabem; e tudo o que há perto e tudo o que há longe não consegue apaziguar o tumulto de seu peito…”
Ao não buscarmos nos desenvolver na plenitude do que nos foi destinado ser (aquém ou além do potencial da nossa essência pessoal – Self) estaremos infringindo a lei fundamental do universo. Como os nossos deuses internos (arquétipos) normalmente não perdoam essa impiedade por hýbris (pecado contra a ordem cósmica), nos sujeitamos ao implacável castigo destes através de patologias de naturezas diversas. Em adição, por ainda não ter sido saciada a vingança divina (arquetípica), podemos ser condenados a chegar ao fim de uma vida inautêntica sentindo que não estivemos aqui de verdade, que fomos refugiados nesta terra, que não fizemos parte do ordenamento cósmico.
Como Ulisses em seu retorno para Ítaca, temos que resistir às tentações inebriantes de Calipso, empreender nossa jornada pessoal e encontrar o lócus que nos cabe na ordem cósmica, fazendo em honra dos deuses aquilo que está em conformidade com nossa própria natureza. A alternativa seria aceitar passivamente que estamos vivendo uma versão de nossa história que foi escrita pelos outros e direcionada pelas circunstâncias.