Podemos enxergar algum sentido nessa tragédia coletiva que nos acomete no momento? Esse é o objetivo de algumas reflexões que iremos fazer no presente texto.
Iremos começar com uma fala de Carl Gustav Jung: “As gigantescas catástrofes que nos ameaçam não são, de modo algum, acontecimentos elementares de natureza física ou biológica, mas acontecimentos psíquicos. As guerras e revoluções que nos ameaçam com tanta violência nada mais são do que epidemias psíquicas….O Iluminismo, ao expulsar os deuses da natureza e das instituições humanas, não atentou àquele Deus do terror que habita em toda a alma humana.”
O iluminismo, movimento intelectual que surgiu durante o século XVIII na Europa, defendendo o uso da da razão (luz) contra o antigo regime (trevas), pregava maior liberdade econômica e política. Esse movimento, representado miticamente por Prometeu, nos foi útil. Roubamos o fogo dos deuses e trouxemos para a humanidade, o que gerou conhecimento.
No entanto, parece que não soubemos utilizar adequadamente o fogo. A racionalidade Prometeica perdeu a sua justa medida e expulsou os deuses da natureza, declarando “Deus está morto”. Não percebeu o terror dentro do homem. Ficamos acorrentados, presos ao capitalismo e ao “mundo com as vantagens anti-sociais, que traz consigo a justificação ideológica da competição na justificação da acumulação de riqueza, mediante a geração de servidão sob o pretexto da eficácia produtiva”, nas palavras de Humberto Maturana.
O homem contemporâneo parece estar cego, incapaz de relembrar a sua antiga intimidade com a terra. Por causa desse “esquecimento”, os problemas ecológicos atuais atiram-se sobre nós como um choque. Nota-se o emergir de uma amnésia que é realmente um duplo esquecimento, no qual uma cultura esquece, e então esquece que tem esquecido de como viver em harmonia com o planeta.
Domenico de Masi, numa entrevista recente disse: “O que significa uma pandemia como essa para Roma, para a Itália, para a humanidade como um todo? Como ela age nas mentes e nos corações de todos nós que, armados com tecnologias poderosas e inteligência artificial, até poucas semanas atrás nos sentíamos os senhores do céu e da terra? Subitamente nos descobrimos frágeis pigmeus diante da onipotência imaterial de um vírus que, por vias misteriosas, escapou de um morcego chinês para vir matar homens e mulheres em nossas cidades. A sujeição a um vírus desconhecido, para o qual não há nem cura nem vacina, transformou a Itália numa enorme caserna blindada e os 60 milhões de italianos noutros tantos dóceis soldadinhos empenhados num gigantesco exercício militar no qual estão obrigados a aprender a verdade que antes ignoravam obstinadamente. O que não quer dizer que irão apreendê-la”.
Parece que a pandemia que nos assola é um grito invisível e mortal da natureza que clama por mudanças no comportamento humano. Afinal, é esse próprio comportamento disfuncional do homem que tem gerado desastres ambientais e destruição dos habitats naturais. Junte à esse comportamento, um grande fluxo de pessoas transitando rapidamente e teremos doenças que antes se ficavam pela natureza e que atingiam apenas animais, vindo para as cidades e devastando populações.
Para o sociólogo Serge Latouche: “Aonde estamos nos encaminhando? Diretamente contra um muro. Estamos a bordo de um bólido sem piloto, sem marcha a ré e sem freios que irá se chocar contra os limites do planeta”. A marcha a ré e os freios que a cultura neoliberal se recusou obstinadamente a usar agora foram desencadeados: não graças a uma revolução violenta, mas sim a um vírus invisível que atuando sobre a sociedade opulenta, ajudará na reflexão dos seus valores. Como o herói mítico Perseu, precisamos do escudo da reflexão para vencer o monstro terrível da medusa do coronavírus.
James Hillman nos convida a pensar se o homem pode ser separado do mundo em que vive. Onde está o “eu”? Onde o “eu” começa? Onde o “eu” termina? Onde o “outro” principia? Até o momento, como não podemos avaliar onde o “eu” termina (em minha pele? em meu comportamento? em minhas conexões de interface pessoal e suas influências e traços?) como nós podemos estabelecer os limites da psicologia?.
A hipótese de Gaia trata o planeta Terra como um único organismo e o ser humano, enquanto indivíduo e espécie, parte dele. A psique humana, assim, é parte integral da teia da natureza e de um sistema mais amplo que a contém e esta contida nela.Será que o homem precisa ver que ele não teceu a rede da vida, é apenas um dos fios dela? O que quer que ele faça à rede, fará a si mesmo. Uma coisa sabemos: nosso deus é também o seu deus. A terra é preciosa para ele e magoá-la é acumular contrariedades sobre o seu criador.
Hoje, como o médico Rieux de A Peste de Albert Camus, publicado em 1947, estamos presos num limbo entre o pesar e a esperança, no qual temos que aprender que “a peste pode vir e ir embora sem que o coração do homem seja modificado”; que “o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, que pode permanecer adormecido por décadas nos móveis e nas roupas, que espera pacientemente nos quartos, nas adegas, nas malas, nos lenços e nos papéis, que talvez chegue o dia em que, infortúnio ou lição aos homens, a peste acordará seus ratos para mandá-los morrer numa cidade feliz”.Só depende de nós.Será que vamos acordar?
Ermelinda Ganem Fernandes – Médica, analista junguiana, doutora em Engenharia e Gestão do Conhecimento. Coordena o curso de Pós Graduação em processo criativo e facilitação de grupos – abordagem junguiana no IJBA