Por Carlos São Paulo
O Dia Internacional do Livro Infantil é dois de abril. Esse dia foi escolhido para homenagear o escritor dinamarquês Hans Christian Andersen que viveu no século XIX. Esse autor de histórias para crianças fez sucesso. Por mais que pareçam ingênuas, essas histórias permitem se ter uma visão de significado mais profundo sobre a vida. Hans, ao escrever A Pequena Sereia, nos permitiu reflexões sobre assuntos difíceis de lidar tais como o amor e a morte.
É como se os contos de fadas fossem uma espécie de sonho não só do seu autor mas também de toda a humanidade. À medida que fazemos algumas reflexões, explorando as metáforas que a descrição de suas imagens permite, aprendemos a encontrar sentido em dificuldades humanas de difícil compreensão. Para a consciência chega sempre como algo inverossímil, pois elas nunca foram fatos, mas são verdadeiras quanto à eficácia em entendermos nossos conflitos.
Nossa mente funciona como se possuíssemos dois cérebros. Um que compartilha a realidade observável dos fatos entre os humanos, e outro que parece revelar a permanência do homem primitivo em nós. Esse homem primitivo sabe todos os segredos do universo, mas precisa da consciência do Eu para se expressar e perceber sua existência. A linguagem do primeiro corresponde ao pensamento dirigido em que o tempo, o espaço e a matéria são fundamentais. Enquanto para o segundo o tempo, o espaço e a matéria não têm existência. Esse não é lógico, é analógico e impessoal.
A Pequena Sereia habita as profundezas do mar. É a mais nova entre as cinco irmãs. Aguarda, com muita curiosidade, chegar aos quinze anos de idade para ter permissão de subir até à superfície do mar como ocorrera com as suas outras irmãs. Preparada, para esse momento, pela sereia avó, precisa colocar oito ostras em sua cauda e isso lhe dói. É o sacrifício a que se submete para sentir-se bela.
Ao chegar à superfície, ela assiste a um naufrágio em que um príncipe é salvo por ela. Apaixona-se por ele. Ela aprendera com a avó que as sereias vivem trezentos anos e depois se diluem como espumas do mar, enquanto os humanos vivem cem anos e, quando morrem, possuem uma alma imortal. Ela, como sereia, para conseguir que um humano lhe dê uma alma sem perder a dele precisa ser amada, mais do que ele ama pai e mãe. Além disso precisa ter pernas.
A paixão faz a Pequena Sereia procurar a bruxa do mar para conseguir ter pernas. A bruxa exige em pagamento deixá-la sem voz e, portanto, sem o canto da sereia. Essa paixão a faz submeter-se ao sacrifício e correr o risco. Para que o encantamento se torne permanente, ela deverá conquistar o amor do príncipe, do contrário se transformará em espumas do mar. Sem conseguir contar ao príncipe que foi ela quem o salvou, este vê numa princesa a beleza do rosto da sua salvadora. Casa-se com ela. As irmãs fazem o sacrifico de cortar os cabelos para que a bruxa lhes ensine como salvar a irmã caçula. A Pequena Sereia então recebe um punhal e deverá matar o seu amado se quiser sobreviver. Contudo, em nome do amor, ela escolhe abençoar o casal e desaparece na forma de espuma.
Nas profundezas da psique humana, lá onde habita nossa história pessoal, formatada dentro da história de toda a humanidade, é onde começamos a dar forma à imagem que nos completa. Assim, para um homem, as figuras que seu Eu considera o oposto a lhe completar é vivenciada em seu início como sereias, sem expressar a sua dimensão genital. É como um corpo de peixe. Com o desenvolvimento, essas imagens encantadoras do que se procura no outro para se completar passam por mudanças sacrificiais na busca de ganhar formas humanas por meio das projeções.
A Pequena Sereia, como o feminino interior do príncipe, passa por sacrifícios até ganhar forma humana. A partir daí ele encontra alguém em que essa imagem é projetada e, só assim, realiza um verdadeiro casamento. Eros é o envolver-se com o outro com alma, ou seja, esse outro que só existe num plano imaginário passa a ter vida espelhado numa princesa. Todo o sacrifício dessa imagem depende dessa mãe negativa, a bruxa, internalizada pelo homem durante o seu desenvolvimento. A imagem perdeu o canto, mas continuou a dar forma ao encanto pelo outro.
Entendemos que na psique masculina existe uma imagem feminina da mulher ideal. Aprendemos nessa história que a morte da Pequena Sereia era para salvar o príncipe. Ou seja, se a imagem idealizada e encantadora não morresse, a realização do príncipe não poderia acontecer. A incompletude no amor, como o outro em nosso lugar, deixa a Pequena Sereia “muda” e em seu estado imaginário. Do contrário o príncipe seria destruído. Assim, toma-se o príncipe como o princípio masculino de um homem que encanta uma mulher. A Pequena Sereia como a imagem de mulher na psique de um homem, e a princesa como a mulher concreta que faz esse homem realizar-se num casamento.
Essas imagens transcendem a vida de um homem. Elas se eternizam como as espumas do mar. O homem, no entanto, para suportar sua finitude precisa encontrar algum mito que dê sentido à sua vida. Desde a origem mais remota, os humanos precisam criar histórias para dar conta de sua necessidade de encontrar significados para a sua existência. Essas ideias e experiências do nosso cérebro arcaico não se pode explicar racionalmente. O mais sensato é respeitar os mistérios da existência.
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Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br