A culpa faz um jogo entre o esquecimento e a lembrança que incomoda. Muitas vezes é difícil definir a quem cabe verdadeiramente esse lugar. Podemos eleger um “bode expiatório” ou, em vez disso, criar uma reflexão profunda para uma ética saudável capaz de nos equilibrar e evitar substituir a responsabilidade por um sentimento de culpa inútil e incômodo. Terminada a guerra, mas ainda em meio aos escombros e à camada espessa da fuligem, o psiquiatra e filósofo alemão, Karl Jaspers, evitou seguir o caminho daqueles conterrâneos que queriam esquecer o assunto. Em meio à chuva de farpas jogadas no seu povo, escreveu a obra A Questão da Culpa: a Alemanha e o Nazismo.
Jaspers se perguntou: “como posso ser um cidadão alemão e não compartilhar a culpa de todas as atrocidades que o Estado alemão praticou?”. Ao considerar a deusa de olhos vendados que segura uma balança, Jaspers trouxe uma distinção entre as formas de culpa, classificando-as em: culpa criminal, culpa moral, culpa política e culpa metafísica.
A culpa criminal é a mais óbvia e a mais usada de forma consciente pelas pessoas que cometem um crime. Nas palavras de Jaspers, são “ações demonstráveis objetivamente que infringem leis inequívocas”. Um tribunal estabelece os fatos e aplica as leis correspondentes. No julgamento de Nuremberg, de acordo com Jaspers, o promotor disse: “queremos deixar claro que não pretendemos culpar todo o povo alemão”; somente indivíduos diretamente responsáveis seriam punidos.
Em uma comparação entre a Alemanha nazista e o Brasil sob a ditadura militar, tivemos pelas leis da anistia uma absolvição de todos os responsáveis pelos crimes cometidos. Não deixaram ser possível a distinção entre os que individualmente eram culpados por crimes, o que permitiria inocentar outros. Por consequência, as Forças Armadas, como instituição, foram inevitavelmente percebidas, em sua totalidade, como criminosas.
Presidentes autorizaram o extermínio sem praticar martírios com as próprias mãos. Para Jaspers, “um crime continua sendo um crime mesmo que tenha sido ordenado”. A culpa moral é descrita como aquela em que o indivíduo seduzido por vantagens pessoais, ou mesmo por causa do medo em desobedecer, toma caminhos errados. Essa culpa só é reconhecida pela consciência que se abre no arrependimento. Muitos militares foram para a reserva ou encontraram outro meio de não partilharem atos criminosos de torturas, fazendo como aqueles alemães que tiveram a coragem de evitar o crime. Para ele, aqueles que se abstiveram diante do mal praticado, quando era possível agir para evitá-lo, tornaram-se também moralmente culpados.
A culpa política coloca os cidadãos como corresponsáveis pelo modo como se governa. Mesmo considerando que milhões de eleitores haviam votado em Hitler, enquanto no Brasil os militares tomaram o poder por meio de um Golpe de Estado, devemos pensar nas razões que levaram uma quantidade grande de pessoas a tornarem-se torturadoras e criminosas. Afinal essas pessoas eram um produto da sociedade brasileira e da educação que haviam recebido.
A culpa política nos exige compreender como nossos atos diante de nossos filhos estão contribuindo para germinar esses aspectos destrutivos de uma sociedade. Podemos examinar nossas atitudes até mesmo em situações banais, como em um trânsito caótico, para mostrarmos valores que pertencem aos homens que evoluíram da condição animal.
A culpa metafísica é sentida à medida que nos percebemos humanos, solidários uns aos outros, e ao longo da construção da nossa “Torre de Babel”, quando vamos deixando pelo caminho as vítimas da asfixia social, da ignorância e miséria. É uma culpa indelével, associada ao desespero de uma impotência diante do absurdo de atos desumanos. O alívio é seguirmos trabalhando em direção à nossa transformação pessoal ao tomar consciência dessa culpa metafísica.
Hoje, no Brasil, em decorrência da revelação de uma grande sombra como a corrupção, muitos tentam viver como se a ditadura militar do nosso passado tivesse sido uma necessidade, uma ideia que ignora o que aconteceu nesse período que transformou homens em torturadores. Quem defende a ditadura nem se pergunta quais mecanismos sociais e psicológicos produziram tais pessoas. Eram homens que podiam ter uma visão dupla de si mesmos: a de indivíduos no papel de marido e pai, ao mesmo tempo em que, como na lenda do Fausto que faz um pacto com o diabo para obter benefícios de poder, violaram seus próprios padrões éticos anteriores e evitaram a consciência da culpa.
A obra de Karl Jaspers nos mostra a coragem de revisar um passado de erros em que estamos envolvidos. Essa é a grande virtude do ser humano, admitir seus erros e conseguir mostrar às futuras gerações a evolução do homem. Em nosso país existiram torturas que evocavam os campos de extermínio nazistas. Precisamos tomar consciência da culpa política, moral e metafísica para que consigamos impedir que psicopatas abram caminho em direção aos píncaros da glória, deixando consequências como as da Alemanha Nazista.
Carlos São Paulo – médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br / www.ijba.com.br