A sombra arquetípica e o Terror: o Grande Deus Pã vive!

Por João Gabriel Suzart Coutinho[1]

“Não há despertar de consciência sem dor. As pessoas farão de tudo, chegando aos limites do absurdo para evitar enfrentar a sua própria alma. Ninguém se torna iluminado por imaginar figuras de luz, mas sim por tornar consciente a escuridão.” (C. G. Jung)

Carl Gustav Jung foi psiquiatra suíço, fundador da Psicologia Analítica e um excepcional desbravador da psique; e, acima de tudo, Jung foi um escolástico de primeira ordem. Mesmo tendo sido fascinado, no início do século XX, pelas ideias psicológicas de Freud acerca do Inconsciente, Jung já tinha uma leitura filosófica extensa e um entendimento próprio e independente sobre o Inconsciente. O próprio Jung exortava em 1931, o quanto é lamentável que as pessoas ainda negassem a existência do Inconsciente após os escritos de Carus e a concepção kantiana de “immeasurable field of obscure ideas”[2]. Shamdasani (2014) aponta que Jung buscou o entendimento sobre o Inconsciente nas figuras filosóficas de Carl Gustav Carus, Eduard von Hartmann e Immanuel Kant, tendo também o filósofo Arthur Schopenhauer como fornecedores de “instrumentos de pensamento”[3]. Para Shamdasani (2005;2014)[4] a noção de Inconsciente Coletivo de Jung tem influência particularmente forte de von Hartmann e Schopenhauer.

Jung (1936/2014)[5] afirma que “o inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de que não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo, portanto uma aquisição pessoal.”; Jung (2013)[6] esclarece que “ao lado desses conteúdos inconscientes pessoais, há outros conteúdos que não provém das aquisições pessoais, mas da possibilidade hereditária do funcionamento psíquico em geral, ou seja, da estrutura cerebral herdada.”; ele continua: “são as conexões mitológicas, os motivos e imagens que podem nascer de novo, a qualquer tempo e lugar, sem tradição ou migração históricas. Denomino esses conteúdos de inconsciente coletivo”. Portanto o inconsciente coletivo é um substrato da psique comum a toda humanidade, uma dimensão apriorística e que se diferencia do material pessoal reprimido, esquecido e subjetivo que faz parte do inconsciente pessoal (WHITMONT, 2008)[7]. O inconsciente coletivo é o espaço onde habitam os arquétipos, que seriam, para Stein (2015)[8], “padrões e forças universalmente predominantes”, ligados intimamente aos instintos, de tal forma que o próprio Jung dizia que os arquétipos são os correlatos psíquicos dos instintos. Como Jung (2013)[9] afirma, o arquétipo “é sempre coletivo, ou seja, no mínimo, comum a todos os povos e tempos. Provavelmente são comuns também a todas as raças e épocas os principais motivos mitológicos”.

Este preambulo se torna necessário para o entendimento do tema deste ensaio, uma vez que a sombra é um conceito que envolve o inconsciente pessoal, mas também o inconsciente coletivo. A sombra é um componente psíquico da personalidade que é inconsciente para o ego, tanto em sua existência, como em seu conteúdo, fenomenologia ou expressão. Ela é composta, de acordo com Whitmont (2008)[10] por partes reprimidas da personalidade em benefício do ego ideal. Hopcke (2011)[11] afirma que “aqueles aspectos desagradáveis e imorais de nós mesmos que gostaríamos de fingir que não existem ou que eles não têm efeitos sobre nossa vida – nossas inferioridades, nossos impulsos inaceitáveis, nossos atos e desejos vergonhosos – formam um lado sombrio de nossa personalidade que é difícil e doloroso de assumir”. Portanto a sombra é parte de todo indivíduo. A grande questão é, como diz Hopcke (2011)[12], que Jung também “considerava a sombra um aspecto do inconsciente coletivo, já que o eu de todo mundo projeta uma sombra correspondente dentro da psique, mas ele também admitia que o caráter da sombra de um indivíduo é altamente influenciado por fatores pessoais e culturais”; ou seja, há também uma sombra arquetípica, que faz parte de toda humanidade.

A sombra arquetípica é uma experiência aterrorizante de contato com o mal. Hillman (2011)[13] afirma que “por detrás da escuridão reprimida e da sombra pessoal – aquilo que foi decomposto e está se decompondo, e aquilo que ainda não existe, mas está germinando –existe a sombra arquetípica”, que, para o autor é “o princípio do não-ser, que foi chamado e descrito como o Demônio, o Mal, o Pecado Original, a Morte, o Nada.”; outro importante autor, Whitmont (2011)[14], diz que a sombra é uma experiência arquetípica do Outro, ou seja, “aquele que, por ser-nos estranho, é sempre suspeito”, por isso a sombra “é o impulso arquetípico de buscar o bode expiatório, de buscar alguém para censurar e atacar a fim de nos vingarmos e nos justificarmos”. É importante observar as imagens que esses autores evocam como representantes da sombra arquetípica: o diabo, o bode, o medo. Todas essas imagens conduzem para uma figura ilustre, representante da sombra arquetípica desde que Cristo foi pregado à sua cruz: o Grande Deus Pã. Reza a lenda contada pelo grego (tornado cidadão romano) Plutarco que alguns marinheiros passavam pelo mar Egeu quando ouviram lamentos no uivo dos ventos, onde uma voz misteriosa exortava: “O Grande Pã está morto!”; todos ficaram aterrorizados. Muitos interpretaram esse momento como a morte do paganismo e o começo do cristianismo, afirmando mesmo que no momento em que esse lamento era vociferado Cristo estava sendo crucificado. Contudo, Jung nos ensina que os antigos deuses não morreram, estão aí, atormentando os psiquiatras, psicólogos, antropólogos, sociólogos e todos que tentam entender as expressões patológicas ou disfuncionais de um indivíduo, um grupo, uma sociedade ou uma nação.

Entretanto, uma vez que “mataram” Pã, ou seja, o negaram veementemente como parte da consciência humana, ele se tornou a sombra de toda humanidade, componente da sombra arquetípica. Pã é filho de Hermes com a ninfa de Dríope; López-Pedraza (1999)[15] descreve que, no “Hino Homérico a Pã”, o deus “desde o primeiro instante de nascido era maravilhoso de se olhar, com pés de bode e dois chifres, uma criança álacre, que dava risadas de puro contentamento”; seu aspecto é animalesco, tendo corpo de homem, pernas e cascos de bode, bem como seus chifres. Pã é um deus da natureza, dos instintos, dos impulsos, do irascível e do incontrolável; uma de suas histórias conta que, caso fosse perturbado em sua sesta por um viajante desavisado que entrasse em seus bosques, causava angústia e terror tamanhos que o viajante fugia desabalado, em pânico; palavra, aliás, que deve sua origem ao Grande Pã. É muito importante observar que López-Pedraza (1999)[16] também fala que, graças à forte repressão do paganismo, no caso particular de Pã, ele foi incumbido de representar sozinho a “sombra de Deus” na figura do diabo dentro do cristianismo; ou seja, como dito acima, Pã representa, por excelência, a sombra arquetípica.

Ora, como bem se sabe desde Jung e com os pós-junguianos, o grande problema da sombra, tanto em nível individual ou coletivo e arquetípico é que, caso não seja reconhecida e, aos poucos, aceita e integrada, ela pode surgir violentamente e causar enormes estragos, principalmente por meio de projeção; Jung (2013)[17], dizia que projetar significa “transferir para o objeto um processo subjetivo”, informando que “pela projeção o sujeito se livra de conteúdos penosos e incompatíveis”. É interessante notar que, ainda Jung (2013)[18] dizia que “não é o sujeito que projeta, mas o inconsciente. Por isso não se cria a projeção: ela já existe de antemão”. É importante que isso se observe, pois aqui falamos de um fenômeno coletivo, arquetípico, e por isso mesmo impessoal. E a grande questão é quando a projeção leva a ações, atitudes e comportamentos.

Para Hillman (2015)[19], Pã é o deus do pânico, do pesadelo, do terror. Desde 2001 o mundo precisou dar um novo sentido à palavra “terror”. Quando o grupo fundamentalista jihadista, a Al-Qaeda, atacou “a grande potência em tecnologia, cultura e desenvolvimento”, os EUA, o mundo foi pego de surpresa, vendo sua noção de “segurança” ser abalada. É interessante notar como Morin (2016)[20] demonstra, que a Al-Qaeda revelou que era possível, usando as palavras do próprio grupo, lutar contra o “Grande Satã” o que, imediatamente constelou no Ocidente a evocação de serem o “eixo do bem” lutando contra o “eixo do mal” dos terroristas. De lá para cá 15 anos se passaram e novos grupos terroristas surgiram enquanto outros perderam sua potência, como hoje vemos o crescimento do Boko Haram e do Estado Islâmico. Observe-se nessa expressão “lutar contra o Grande Satã”, utilizada pelos grupos terroristas, como é notável a projeção da sombra arquetípica, o Grande Pã.

Abrams e Zweig (2011)[21] afirmam que

“a sombra coletiva pode tomar a forma de fenômenos de massa, nos quais nações inteiras são possuídas pela força arquetípica do mal. Isso pode ser explicado pelo processo inconsciente conhecido como participation mystique – por esse processo, o indivíduo (ou o grupo) vincula-se e identifica-se psicologicamente com um objeto, pessoa ou ideia, tornando-se incapaz de fazer uma distinção moral entre ele mesmo e sua percepção do objeto. No caso da sombra coletiva, isso pode significar que as pessoas se identificam com uma ideologia”[22]

exatamente como ocorreu e ainda ocorre com a formação dos grupos terroristas. Aqui é possível notar uma expressão dupla da manifestação da sombra arquetípica, de Pã, a projeção desta imagem no Ocidente e a possessão pela força arquetípica do deus do terror que explode violentamente.

É interessante notar como o mundo foi pego de surpresa pela primeira vez em 2001 com a explosão violenta do chamado terrorismo; impossível não observar aí a irrupção violenta da sombra arquetípica: de Pã, o deus do pânico e do terror. Durante milênios Pã foi reprimido: os instintos, a natureza, o encantamento pela vida que o deus em questão representa foram negados. É importante notar que o primeiro lugar que essa nova forma de terror ataca é a nação que mais representa a mentalidade racional, lógica, científica e que destrói a natureza e a biosfera. Tal qual a síndrome do pânico na clínica pode ser uma pista simbólica para se chegar a Pã e sua constelação na psique do paciente, o terror em seus atuais moldes também pode ser uma pista para se chegar a essa face da sombra arquetípica, do lado negativo do grande Pã que, após milênios de negação e repressão irrompe violentamente. A nova forma de violência do Estado Islâmico é tão visceral e irascível que eles não apenas atacam de forma barbárica as pessoas, mas destroem monumentos e sítios arqueológicos de culturas, religiões e sociedades que não são as suas. É bestialidade pura que tenta apagar por completo partes da história da humanidade.

A irrupção violenta da sombra arquetípica, do grande Pã e seu aspecto de pânico e terror, o lado negativo da expressão arquetípica, é a consequência, como foi dito, de uma negação milenar; quanto maior for a repressão, maior será a violência com a qual esse conteúdo negado virá à consciência, no caso coletiva. Para Hillman (1989)[23], de alguma forma os terroristas tem conseguido ampliar a consciência coletiva, para além da ampliação de consciência de nossos pacientes de consultório. O preço tem sido caro, e as respostas das pessoas e das nações permanecem equivocadas. Mas é importante que se diga: sendo essa irrupção violenta um sintoma, é possível ter pistas simbólicas para que se chegue de forma saudável à integração. Guggenbühl-Craig (2011)[24], afirma que podemos “concluir que uma forte sombra arquetípica, àquilo que chamamos os elementos homicidas e suicidas, resulta num alto grau de criatividade quando é combinada com um senso, igualmente poderoso, de Eros”. O autor continua: “esse mesmo conflito, o conflito entre o amor – pelos nossos semelhantes, pelo nosso ambiente, pela nossa psique – e uma paixão homicida pela destruição, impulsiona a pessoa para as margens de sua moldura de referência existencial”, e finaliza dizendo que “o homicida teria prazer em destruir. Eros em renovar; da combinação desses dois elementos, destruição e renovação, surgiria algo criativo, surgiria o Criativo”.

Essa perspectiva acima apresentada é muito importante de se perceber; é o lado positivo do arquetípico Pã; resgatemos as qualidades descritas no Hino de seu nascimento: “uma criança álacre, que dava risadas de puro contentamento”; ou seja, uma criança que é alegre, vivo, animado: que tem alma! Pã é criativo, alegre, espontâneo, musical, erótico (provido de Eros) em seu lado positivo. Precisamos resgatar Pã em nossa psique. López-Pedraza (1999)[25] nos ensina que, um dos caminhos possíveis para esse resgate é observar a retórica de Pã e, para o autor, Pã se comunica através de Eco, a ninfa que estava ao lado do deus no lago em que Psique tentou suicídio e, por isso mesmo, López-Pedraza (1999)[26] enxerga esse casal arquetípico como salvadores da Psique. Essa é uma imagem forte. Trabalhar com Pã através de Eco é olhar Pã em nós, em cada um, aceita-lo, integrá-lo e dessa forma resgatar seus aspectos saudáveis e criativos, salvando nossa Psique e a Psique em nós.

Pã vive! Pã se manifestou com violência terrorista e projetiva, numa explosão sombria arquetípica. Cuidemos de Pã em nós e façamos, como diz Jung, o melhor trabalho político, social e espiritual que podemos: paremos de projetar nossas sombras e a integremos, para que a consciência coletiva possa, aos poucos integrar o grande Pã a seu tempo.


[1] Psicólogo e Psicoterapeuta, pós-graduado em Psicoterapia Analítica pelo IJBA; Especialista em Psicologia Clínica (CFP); Mestrando em Saúde Coletiva (ISC/UFBA).

BIBLIOGRAFIA

[2] JUNG, C. G. Modern Man in Search of a Soul. New York: Harcourt, 1933/2010.

[3] Ximena de Ângulo. “Comments on a Doctoral Thesis”. In: C.G. Jung Speaking: Interviews and Encounters. Ed. William McGuire e R.F.C Hull. Bolligen Series(Princenton/Londres: Princeton University Press, 1977), 207.

[4] SHAMDASANI, S. Jung e a construção da psicologia moderna: o sonho de uma ciência. Aparecida: Ideias e Letras, 2005; SHAMDASANI, S. C. G. Jung, uma biografia em livros. Petrópolis: Vozes, 2014.

[5] JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2014, 11ª ed., Vol. 9/1.

[6] JUNG, C. G. Tipos Psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2013, 7ª ed., Vol. 6.

[7] WHITMONT, E. C. A busca do símbolo: conceitos básicos de Psicologia Analítica. São Paulo: Cultrix, 2008.

[8] STEIN, M. Jung: o mapa da alma, uma introdução. São Paulo: Cultrix, 2015.

[9] JUNG, C. G. Tipos Psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2013, 7ª ed., Vol. 6.

[10] WHITMONT, E. C. A busca do símbolo: conceitos básicos de Psicologia Analítica. São Paulo: Cultrix, 2008.

[11] HOPCKE, R. H. Guia para a Obra Completa de C. G. Jung. Petrópolis: Vozes, 2011.

[12] Idem, Ibidem.

[13] HILLMAN, J. A cura da sombra. In: ZWEIG, C.; ABRAMS, J. (org). Ao encontro da sombra: o potencial oculto do lado escuro da natureza humana. 8 ed. São Paulo: Cultrix, 2011.

[14] WHITMONT, E. C. A evolução da sombra. In: ZWEIG, C.; ABRAMS, J. (org). Ao encontro da sombra: o potencial oculto do lado escuro da natureza humana. 8 ed. São Paulo: Cultrix, 2011.

[15] LÓPEZ-PEDRAZA, R. Hermes e seus filhos. São Paulo: Paulus, 1999.

[16] Idem, Ibidem.

[17] JUNG, C. G. Tipos Psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2013, 7ª ed., Vol. 6.

[18] JUNG, C. G. Aion: estudo sobre o simbolismo do Si-mesmo. Petrópolis: Vozes, 2013, 10ª ed., Vol. 9/2.

[19] HILLMAN, J. Pã e o pesadelo. São Paulo: Paulus, 2015.

[20] MORIN, E. Tentando compreender. In: FOTTORINO, E. (Org.). Quem é o Estado Islâmico? Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.

[21] ZWEIG, C.; ABRAMS, J. (org). Ao encontro da sombra: o potencial oculto do lado escuro da natureza humana. 8 ed. São Paulo: Cultrix, 2011.

[22] Idem, ibidem, pp. 189

[23] HILLMAN, J. Entre Vistas: conversas com Laura Pozzo sobre psicoterapia, biografia, amor, alma, sonhos, trabalho, imaginação e o estado da cultura. São Paulo: Summus, 1989.

[24] GUGGENBÜHL-CRAIG, A. Por que os psicopatas não governam o mundo? In: ZWEIG, C.; ABRAMS, J. (org). Ao encontro da sombra: o potencial oculto do lado escuro da natureza humana. 8 ed. São Paulo: Cultrix, 2011.

[25] LÓPEZ-PEDRAZA, R. Hermes e seus filhos. São Paulo: Paulus, 1999.

[26] Idem, Ibidem.