Os complexos culturais atravessam as gerações como a girar em torno de um eixo em que as razões objetivas dos comportamentos vão sendo esquecidas e, em seu lugar, surgem condutas reativas ao que foi perdido. Essa é uma das razões que nos leva a dar importância ao conhecimento sobre a história que conta como nossas mães e avós viveram as experiências de serem mulheres, esposas e mães, em uma cultura patriarcal.
Na psicologia de C. G. Jung, denominamos “complexos” tudo que atrapalha o exercício da vontade livre e nos faz sentir a experiência com a carga afetiva de algum fato análogo que foi doloroso. Essa é a razão de certos acontecimentos em nossas vidas nos fazerem sofrer de forma desproporcional ao que aconteceu. Estamos inconscientes desses fatos. Assim como reagimos a vivências pessoais com os complexos, também a cultura de um povo procura se proteger do que já foi vivido de forma traumática e estabelece o que chamamos de complexos culturais Intergeracionais.
A família patriarcal, por exemplo, tinha o sexo no corpo feminino como o mal. Talvez essa seja a razão que fez surgir, nos tempos atuais, as “relações líquidas”, como denomina o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman. É um modo de viver sem o cimento de Eros e com as consequências que fizeram ambos os sexos correrem para o mundo do poder, do penetrar, em lugar do acolhimento vaginal como se a feminilidade fosse o mal.
Jung defende que o nosso interesse é saber o que as pessoas fazem com seus complexos. É o que fazemos com os nossos complexos pessoais e culturais que determina quem nos tornamos como indivíduos, grupos e sociedades. Daí a importância de uma boa literatura, mais que qualquer compêndio informativo, para nos alertar sobre os complexos existentes na cultura em que nascemos.
O romance da brasileira Martha Batalha, A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, adaptado para o cinema, conta a história de duas irmãs nascidas nos anos 40. A mais velha, Eurídice, era uma mulher brilhante, provavelmente vocacionada para a música. Em obediência ao seu pai, por ser mulher, teve que declinar o convite de Heitor Villa-Lobos para seguir uma vida artística.
Eurídice, que escolheu obedecer ao pai, casou-se com Antenor e perdeu a liberdade de ser ela mesma. Nem se dedicou à sua vocação, nem teve seu talento reconhecido por ser do lar. Guida, a irmã mais nova, escolheu desobedecer ao pai e fugiu com Marcos. Apareceu grávida, imaginando que o amor de pai superaria o complexo cultural de ter uma filha mãe solteira, mas foi despejada por ele, que considerou Eurídice como sua única filha. As duas irmãs, portanto, seguiram caminhos opostos e nenhuma das duas foram felizes em suas escolhas. Guida viveu na extrema pobreza e conseguiu criar seu filho com a ajuda da Filomena — uma ex-prostituta que cuidava de crianças —, enquanto Eurídice viveu na pobreza de espírito, em sua “vida invisível”.
Há uma diferença entre ter talento e ter vocação. Talento é fazer bem o que se dispõe a fazer; vocação é tão maior que não leva em conta a valorização econômica da profissão. A vocação é um fazer com alma, mas parece que nem todas as pessoas possuem; o talento é uma habilidade adquirida por muitas pessoas que são capazes de fazer bem aquilo a que se dedicam.
Para entendermos um complexo cultural, precisamos retroceder no tempo e analisarmos os mitos. Mitos são verdades psíquicas que os historiadores, às vezes, contam, dando a impressão de que deixaram de lado sua importância simbólica. Sabe-se que a “Imaculada Concepção” de Maria só veio a ganhar importância dogmática no século XIX. O corpo feminino representado nessa ideia não poderia deixar o desejo sexual tomar conta do lugar sagrado da família.
Nesse passado, uma figura feminina, para ser amada, teria que ser depurada do pecado e do sexo. Então qual a razão da mulher não virgem ser odiada? O corpo da mulher mobilizava no homem o desejo impróprio que poderia produzir a gravidez indesejada. Além disso, dentre tantas outras análises, poderemos considerar também um mecanismo de defesa masculino para que o homem não vivesse a responsabilidade de corresponder ao desejo feminino caso esse fosse considerado. Quando a ciência ofereceu a homens e mulheres a condição de ter o sexo evitando a gravidez, que não se queria, a sociedade modificou a expressão desse complexo cultural que ainda persiste, vendendo o mundo dos homens como algo cobiçado — ter o poder —, em lugar do mundo cristão e feminino, que é acolhedor ao tempo em que Eros mostra como é uma relação de alteridade ou mais evoluída.
Homens hoje formam famílias e lutam com a dificuldade de ter uma esposa que é, ao mesmo tempo, mulher e mãe. Mãe que guarda em si o tema arquetípico da “Imaculada Concepção”. Como voltar a erotizar a família ou essa mulher que se tornou mãe? É o estado de consciência de um complexo cultural em que muito se precisa fazer para que o homem não faça de sua família o estado de amor dissociado de sexo e necessite das “Madalenas” para efeito de suas experiências sexuais, nem falte às mulheres um homem capaz de respeitá-las com o seu feminino acolhedor e suas realizações nesse mundo cíclico em que vivem as mulheres.
Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br / www.ijba.com.br