Por Carlos São Paulo
Já entrei e saí desta sala inúmeras vezes. Não sei por que agora aquele relógio em pé, no canto da sala, levou-me a lembranças da adolescência. Ele me assombrava com sua imponência exibindo o trabalho de algum artista, mas com uma aparência de respeito semelhante àquelas togas dos juízes quando estão decidindo o destino dos homens. Tinha medo daquela haste de metal dourado, descendo de sua aparente nobreza e fazia um leve balançar obrigando os ponteiros a fatiar o tempo.
O tempo de viver, o tempo de esperar aquela fase passar. Em uma dessas noites, naquela época, o relógio estava próximo de dar as duas badaladas na madrugada. Eu fingia que dormia, enquanto esperava aquele momento. Tinha 14 anos, mas já começava a perceber as sombras que encobriam toda a minha inocência.
Enquanto experimentava a expectativa das horas, enxergava na parede uma lagartixa que alcançava um animal indefeso, uma mosca sem conseguir escapar.
As ideias embolavam em minha imaginação. Nunca soube como era a vida das minhas amigas nas madrugadas, apenas imaginava que tinham sonhos bons. Se eu fosse aquele inseto, acho que saberia voar e escapar. Lembrava-me de um coleguinha que eu apreciava, mas também nunca falei nada para ele. O que eu poderia falar? Eu me sentia uma mulher quando ele me olhava.
Minha mãe me falava de coisas como quem queria me fazer entender o que ela sentia vergonha de explicar. Disse que eu não era mais uma menina. Ela parecia esconder alguma coisa do outro e de si própria. O que ela julgava e me prevenia, eu não conseguia decifrar.
Para mim o tempo tinha a forma de som; o medo era anunciado por um coração que palpitava. Era a hora perigosa da noite. A noite era escura, mas meus pensamentos eram mais escuros ainda. Até hoje eu sonho com o som daquele relógio às duas horas da madrugada. Sei que esse tempo passou, mas fiquei enganchada naquele fenômeno acústico que feria a história de minha adolescência.
Imaginava que os meus pais se amavam, mas era confuso compreender aquele amor. Aliás, naquela época o que eu poderia saber de amor se até hoje não sei? O que sabia era que pai e mãe amam seus filhos de uma forma diferente do que acontece entre eles. A ideia de um casal praticando o ato de fazer as vidas surgirem no mundo, deveria ser um ato sagrado.
O desejo me confundia quando elucubrava a relação dos meus pais. Não sabia por que, mas imaginava que só ele, em seu convencimento de grandeza, podia realmente desfrutar de alguma coisa e que minha mãe apenas obedecia.
Meu pai, em minha cabeça, confundia-se com o relógio. Ele era para mim uma espécie de juiz rígido que, mesmo antes de julgar, já sentenciava. Amedrontava minha mãe, pois ela tinha medo daquelas sentenças. Perguntei-me: “Se eu fosse um menino o que seria diferente nas preocupações dela?”
O meu coração não sabe o que pensa. É possível sentir que ele enrijece e esse enrijecimento se deve à tensão constante do modo como experimento a vida. Esse órgão em meu peito tinha deixado de ser o animal do amor e do calor e passou a me atacar enquanto contava o meu tempo de vida. Compreendo que o terror vive em mim e, a qualquer momento, pode sair de onde se esconde para atuar e me assombrar.
Esse tempo passou, mas a rigidez do dogma me prensa ainda. Não tinha meios de distinguir a diferença entre amor e maldade, naquela experiência das duas horas da madrugada. O silêncio deixado depois das duas badaladas permitia que eu ouvisse as pisadas, quase inaudíveis, mas que, para mim eram como as pisadas de um gigante.
Lembrava-me da mosca que nada podia fazer para se defender da lagartixa. Até pensava em abrir os meus olhos, deixar de fingir que dormia, mas eu não conseguia deixá-lo saber que eu testemunhava aquele ato criminoso. O sexo não era expressão de amor. Era naquele momento, a expressão de um crime.
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Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br