Caim

Por Carlos São Paulo 

Em minha infância, meu avô contava-me histórias bíblicas que me intrigavam. Era difícil contestar qualquer incoerência percebida. Hoje li Caim, de Saramago. Um discurso direto, recontando a história de Caim. Os acontecimentos são descritos como se fossem fatos e, ao mesmo tempo, ele faz uma reflexão envolvida em fantasia. O Caim mítico, depois do crime que cometera, é condenado a vaguear eternamente com um sinal negro na testa. O autor passeia pelos textos bíblicos do primeiro testamento, discute em Caim a lógica dos atos de Iahweh Deus e quer que o todo poderoso enxergue a sua parcela de culpa pelo crime de Caim.  

O pensamento junguiano faz entender que a psique coletiva selecionou, no decorrer dos séculos, esses textos do antigo testamento. Essas histórias são chamadas de mitos e correspondem aos arquétipos, um aspecto da psique que é capaz de organizar os fatos concretos para nos conduzir em atitudes. O escritor italiano Roberto Calasso definiu que os mitos são histórias que nunca aconteceram, mas sempre existiram, a exemplo do DNA que existe em cada humano e pode ser ativado ou não.  

Saramago chamou a essas histórias de o “LIVRO DOS DISPARATES”. Assim como, quando acordamos, ao lembrar dos nossos sonhos também os achamos verdadeiros disparates. Isso acontece porque quando dormindo mergulhamos no mundo das trevas em que a consciência do Eu não consegue atuar para impor sua lógica racional. Ao pedir ao meu analisando para escrever seus sonhos, pretendo com isso levá-lo comigo a fazer contato com as matrizes de sua própria existência. 

Para analisar o sonho de um indivíduo, podemos imitar Saramago: fazemos o sonhador olhar para todos os lados, interagir com essas imagens e provocar todos os tipos de fantasias possíveis sobre elas, até encontrarmos um sentido ou esclarecer as suas raízes. Essa é uma maneira de entender a linguagem analógica da natureza da psique, que se expressa por meio dos símbolos. Tais símbolos são necessários no funcionamento mental. A construção deles envolve uma imagem associada a pensamentos, sensações, sentimentos, intuições e toda ordem de emoções. Todo símbolo tem um aspecto conhecido, desconhecido, racional e irracional. Essa dualidade vai refletir na luta entre a crença científica e a religiosa. Digo crença científica porque quando escutamos que o universo tem 15 bilhões de anos, também queremos entender o que existia antes, e essa ciência não explica.  

Numa linguagem analítica, e por analogia, Caim é o aspecto conhecido da psique, o Eu. Como o homem não é só o que ele sabe que sabe ou o que sabe que não sabe, a psique vai além desse Eu e é um mistério guardado nas trevas do incognoscível. Essa descrição coincide com a idéia de Iahweh Deus. Assim sendo, o mito de Caim diz muito sobre a luta de um Eu que tenta compreender sua própria totalidade: Iahweh Deus. Jung faz uma diferença entre a ideia de Deus como experiência da psique, e o Deus transcendental que foge ao estudo dessa psicologia para pertencer aos estudos da teologia. 

Às vezes nos sentimos duais e percebemos dois aspectos de nós mesmos: um que amamos e outro que odiamos (relação de Abel e Caim). Quando o lado desapreciado se vinga, mata um outro de nós mesmos e, por isso, ficamos marcados e somos condenados a sair a esmo à procura de paz e afeto. Esse Caim não pode compreender, por exemplo, o ato de Abraão ao demonstrar a sua fé no momento em que ele manifesta ser capaz de eliminar o que seu Eu tem de mais precioso: a sua criação. O Eu não entende que é preciso demonstrar capacidade de sacrifício dos seus interesses para mostrar que a sua essência é a mais importante. Existem lutas entre o mundo concreto do Eu e o nosso mundo das sombras que, em sua escuridão, escondem todo um projeto de vida coerente com sua essência. 

No episódio de Sodoma, Iahweh Deus mata também os inocentes, da mesma forma que aconteceu quando a cidade de Jericó que virou o palco de um combate liderado por Josué. Essas contradições descritas por Saramago, na visão do personagem Caim, é uma clara compreensão de que ao destruirmos o mal também destruímos o bem. Muito do que se manifesta como o mal numa personalidade, pode ser traço saudável que em outro contexto seria o bem. A Psicoterapia Analítica não trabalha para eliminar o mal, mas para o indivíduo sair da dualidade e mais bem se relacionar com a divindade que há em si mesmo.  

Na história de Jó, percebemos que a sua ligação com o divino envolvia seus interesses pelo mundo material e que a verdadeira espiritualização só aconteceu quando o sofrimento e a miséria lhe trouxeram a necessidade de lidar com o mundo imaterial. Há pessoas que só com muito sofrimento, doenças graves, consegue com esforço experimentar a espiritualização de um modo natural e verdadeiro. 

O Caim que há em cada humano luta para entender esse tipo de justiça divina em nossa natureza. Construímos uma Babel de difícil comunicação. Deixamos pelos caminhos os miseráveis e os injustiçados por nossas ações e preconceitos. A história de Caim é a história de um homem à procura de paz e afeto, perseguindo eternamente seu destino.  

________________________________________________________________________________________________________________

Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br