Com os olhos lançados para o infinito e um livro nas mãos, eu visualizava uma linha imaginária limitando o mar da Bahia em seu avanço para o céu. Esse mar, em sua imensidão, unia-se a todos os outros mares para se diferençar da terra e ser apenas o mar a nos dar a impressão do ilimitado. Esse é o nosso desafio, conviver com o limite. Cem é o limite da vida humana. Então me fiz a pergunta: como nós poderíamos passar a vida com a consciência da morte importunando os nossos sonhos?
O livro que estava em minhas mãos chama-se Doidas e Santas e foi escrito por Martha Medeiros. Eu lia uma de suas cem crônicas bem humoradas cujo titulo é: Cem Coisas. Começa por discutir essas listas de cem coisas que deveremos fazer antes de morrer e brinca questionando essa certeza que todos têm ao dizer que ela prefere encará-la como hipótese. O contraste entre uma realidade sabida – a da morte – e a surpresa em fazer uma afirmativa contrária produz o humor. Essa é uma forma de se fazer a negação da morte. Brincar com a ideia de morrer.
A negação da morte poderá surgir por meio de diversos modos disfarçados em vestes de artifícios psicológicos, com a finalidade de aliviar o fardo penoso a ser carregado pela consciência. As pessoas vivem como se estivessem imunes ao inevitável, no entanto sabemos o quanto a idéia da morte persegue o humano. Há um fenômeno, muitas vezes revelado, que mostra quando pessoas estão em desespero, por medo da morte, saltam de precipícios como se fossem se salvar. Essa mistura de heroísmo e medo reflete a idéia central do herói que desafia a morte. Ser herói é adquirir um sentimento de valor que poderá impulsionar o sujeito a arriscar sua vida com o fito de salvar outras vidas. Esse mesmo homem poderá considerar sorte, quando escapa da morte provocada pelo tiro que mata o outro que estava ao seu lado.
Muitas são as listas que nos sugerem o que fazer antes de morrer. O curioso é que são repletas de itens considerados inúteis: dirigir uma Ferrari, fazer um safári, frequentar uma praia de nudismo, comer algo exótico (um baiacu venenoso, por exemplo), visitar um vulcão ativo, perder fortuna nos cassinos de Las Vegas e etc. Pensar nessas listas é considerar que tudo que já fizemos, por ser considerado útil, não entra nessa relação. A relação parece sugerir que só experimentamos a vida, com aquelas coisas que te servem ao prazer em um estado de inconsciência do limitado. É como diz Rubem Alves: “O prazer e a alegria moram na inutilidade”.
E o que fariam aqueles que já avançaram na idade e agora o medo que a morte inspira já ficou mais evidente? Talvez como traduz a cronista, seja melhor seguir uma lista das cem coisas a evitar antes de morrer. As orientações médicas já o impedem de tantas coisas com suas imensas listas de orientações. Muitas são as idéias que surgem para evitar a fatalidade da morte e vencê-la mediante a negação de que ela seja o destino final do homem. Jung nos aconselha a considerar a morte como um objetivo da experiência do viver e que fugir dela é esquivar-se da vida e de seus propósitos. Em sua sabedoria octogenária, Jung diz que a vida se comporta como se fosse continuar. Aconselha a quem já avançou na idade que siga em frente como se ainda fosse viver por séculos. Assim viverá corretamente.
Experimentamos um corpo que sente dor e definha até não poder mais existir. Nossa ânsia por atividades, a fim de incorporar experiências e expandir-se ilimitadamente é conseguida por sermos um ser simbólico. Muitos acreditam na morte como uma promoção suprema para uma forma outra de vida superior, para o desfrute da eternidade de alguma forma. Embora mesmo assim, nesses, o medo da morte continue. Criamos rituais para nos aliviar o sofrimento quando perdemos um ente querido.
Quando aquela pessoa que amamos morre, ficamos a perguntar como é que aquela vida desapareceu para sempre. Teorizamos para onde deveriam ir. Temos um nome e uma história de vida. Essa história poderá ser contada por outras gerações que se sucederão. Histórias essas que certamente serão embelezadas pela licença poética natural daqueles que a amam. Falamos de um tempo que já se foi, mas que ficou enganchado em algum lugar dentro de nós. Um lugar tão longe, onde só se chega viajando na saudade. É nesse lugar que nossas emoções procuram algo material para ficar em seu lugar, mas quanto mais se busca mais se sente o quanto é distante. Na Páscoa o grito de alegria é “Cristo ressuscitou!”.