Ciência e liberalismo, religião e conservadorismo: inconciliáveis ou incompreendidos?

Por Paulo Nunes

No dia 3 de agosto de 2018, o STF iniciou o debate sobre a proposta de descriminalização do aborto que, se aprovada, permitiria sua realização até a décima segunda semana de gestação. O tema, evitado no Congresso Nacional por seu caráter controverso, foi levado à Suprema Corte brasileira, que convidou mais de 60 debatedores, entre religiosos, médicos e especialistas nos diversos aspectos relacionados ao assunto. Findo o processo e ainda sem data para uma votação mesmo após passados quase 4 anos, discute-se ainda se o STF tem poder de decidir sobre o tema, já que a legislação penal é uma prerrogativa do Poder Legislativo.

Tal discussão se dá no seio de uma acirrada oposição entre a comunidade científica e a religiosa. A primeira considera que, sendo o Brasil um estado laico, apenas os aspectos biológicos e sociais da questão devam ser levados em conta na hora de definir quando a vida humana começa – e assim passa a ter direitos. A comunidade religiosa, por questões doutrinárias, já tem prontas suas respostas sobre as difíceis questões deste tema e faz constante pressão política para que as leis reflitam este entendimento moral.

Em seu revolucionário trabalho “Tipos psicológicos”, Jung (2013t) mostrou que, na história das ideias, a oposição aparentemente inconciliável entre julgamento lógico-científico e valorativo-moral é algo recorrente e resultado de uma estrutura fundamental da psique, que se organiza em pares de funções opostas. A oposição entre ciência e moral, expressa nas discussões sobre o aborto e também na polarização política da atualidade, é na verdade uma falsa oposição: o julgamento valorativo e o lógico são dimensões distintas e complementares que, mesmo estando presentes em graus diferentes de acordo com a atividade humana envolvida, devem sempre trabalhar em conjunto para que se encontre uma perspectiva completa de cada questão (JUNG, 2013a).

Se a Ciência promove o progresso material, melhoria das condições de vida e saúde, ampliação das possibilidades humanas, a concordância coletiva com um código moral que se aplique a todos é o que mantém a humanidade coesa, o que permite a cooperação e a convivência em grandes números. Sem um entendimento moral unificado, nenhum progresso científico consegue evitar o poder destruidor das tensões sociais que só se acumulam num mundo que dá cada vez menos valor aos códigos de ética tradicionais. Em grande parte, a responsabilidade por isso é das religiões (principalmente as hebraico-cristãs ou “ocidentais”), que, tradicionalmente dedicadas ao cultivo da moral e do sentido da vida, mostram grande dificuldade em adaptar-se às profundas mudanças culturais ocorridas ao longo de séculos, tornando-se fonte de discordância, preconceito e opressão, acirrando as tensões em vez de aliviá-las na união dos povos.

Durante grande parte da Idade Média, os dogmas do catolicismo eram a verdade universal da qual emanavam desde a interpretação da realidade física às leis que regulavam a vida em sociedade. Qualquer proposição científica que discordasse da verdade teológica seria considerada heresia e seu autor sofreria graves consequências. Após a Reforma Protestante, o catolicismo progressivamente perdeu o posto de religião oficial do mundo ocidental e logo a indústria e as ciências libertaram-se das amarras dogmáticas da fé católica.

Por ter tido a coragem de denunciar a corrupção da Igreja Católica de sua época, o padre  alemão Martinho Lutero pode ser considerado um homem de sorte por ter sido somente excomungado pelo Papa Leão X em 1521. Em 1534, Lutero traduz a Bíblia para o Alemão; antes ela só podia ser lida por padres, na versão oficial em Latim. Segundo o sociólogo Max Weber (2004), a tradução do líder da Reforma inovou ao usar no livro de Eclesiástico (na época, ainda considerado canônico pelos protestantes) a palavra alemã beruf – “trabalho” ou “dever” – no lugar do Latim vocatio ou do Grego κλῆσις (klésis, “chamar”), que tinha a acepção bíblica de “chamado divino” ou vocação. Comparativamente, temos εκκλησία (eclesia): literalmente, “chamar para fora”, tinha a acepção de “assembléia” enquanto chamado para congregar-se publicamente para deliberar assuntos do Estado. O chamado de uma força superior para que os indivíduos reúnam-se é a raiz grega do que hoje chamamos de “igreja”.

Enquanto “trabalho” sugere obrigação e dever (imposto de fora), muitas vezes penoso (“trabalhoso”), “vocação” é um chamado compreendido como sagrado, que surge no interior do indivíduo e lhe dá grande motivação, sentido à vida. Não raro, para ser seguida, a vocação requer de alguém a ruptura com as tradições ou expectativas sociais sobre sua pessoa, podendo trazer então dificuldades e lutas, processo que o apóstolo Paulo chamou de “o bom combate” (2 Tim 4:7-8). Para Weber, esta aparentemente inócua troca de vocábulos conferiu ao trabalho, outrora mundano, mero “ganha-pão”, um caráter de mandamento divino, o que contribuiu sobremaneira para a domesticação das forças produtivas tão requerida pelo Capitalismo nascente. Associado à ruptura com entendimento católico de que o lucro e a riqueza excessiva configurariam o pecado da usura, a Reforma Protestante construiu uma interpretação bíblica até então inédita, possibilitando a expansão do novo sistema produtivo (WEBER, 2004).

A doutrina católica medieval baseava-se nas palavras de Jesus em Marcos 10:25: “É mais fácil passar o camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar o rico no Reino de Deus”. Ao incutir a culpa pelo enriquecimento na alma do homem comum enquanto à nobreza e ao Vaticano era permitido o acúmulo de enorme patrimônio, a Igreja Católica cumpria o papel de manter as classes sociais estacionárias no mundo feudal. Indo na direção contrária, o Protestantismo passou a prescrever o caráter sagrado do trabalho acima das demais atividades humanas, sustentado pela promessa de que a riqueza material é abençoada por Deus e está ao alcance de qualquer um que se esforce suficientemente para obtê-la. Diz o versículo supracitado de Eclesiástico (11: 21-23): “Permanece firme em teu trabalho (no original: “permanece firme em seu chamado”), ocupa-te bem dele e envelhece cumprindo teus deveres. Não admires as obras dos pecadores, mas confia em Deus e permanece em teu trabalho. Pois é fácil, aos olhos de Deus, enriquecer o pobre, num instante.”

Se o liberalismo econômico foi facilmente acomodado à teologia Protestante, o mesmo não pode ser dito do liberalismo dos costumes e relações humanas. Jesus, há mais de dois mil anos, convivia harmoniosamente tanto com homens de posse como com despossuídos, com prostitutas, pescadores e cobradores de impostos, evitando julgamentos morais tradicionais e defendendo o bom senso diante das necessidades básicas e vicissitudes da vida humana em detrimento da cega observância à letra da lei de Moisés. Em várias ocasiões, ele opôs-se publicamente às punições severas prescritas para quem, por exemplo, não guardasse o sábado, cometia adultério ou comia alimentos proibidos aos judeus, apresentando um comportamento ousado de reformador religioso até mesmo em pregações dentro das sinagogas.

Considerado um transgressor pelos fariseus em sua época, é compreensível que Jesus não seja considerado o Filho de Deus para o Judaísmo, que ainda hoje mantém rigorosa observância à doutrina do Antigo Testamento. Como poderia ser o suposto Filho tão diferente do Pai? Ou, por outro lado, não seria propriamente o Filho o único capaz de reformular a doutrina paterna?

Para Jung, é exatamente disso que se trata o Cristianismo. Jesus, enquanto encarnação de Deus, representa uma atualização necessária ao primitivo Javé, que exibia um temperamento volúvel e uma fúria vingativa e implacável própria dos deuses pagãos da antiguidade. Segundo o livro do profeta Naum, “O Senhor é um Deus ciumento e vingador” (Na 1:2); de modo que ele teria feito-se homem para tornar-se menos colérico, arcaico e intempestivo (JUNG, 2013). A era da lei passa e inaugura-se a era da misericórdia, do amor, o que obviamente só foi possível pela domesticação da barbárie humana pela dura moral dos deuses terríveis da antiguidade. Estudos importantes sobre esta transição foram publicados pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche em “Genealogia da Moral” e pelo francês Michel Foucault em “Vigiar e Punir”.

Curiosamente, vem de um rabino – o brasileiro Nilton Bonder – a crítica de que o excesso de zelo por uma doutrina desatualizada faz com que um povo torne-se perverso. Perversidade ocorre quando o castigo é desproporcional à falta; mas mesmo que as punições legais tenham cada vez mais se abrandado em resposta ao maior grau de cultura alcançado pela humanidade (NIETZSCHE, 1998; FOUCAULT, 1996), as religiões de origem hebraico-cristãs ainda conservam a ameaça do fogo eterno do inferno pendente sobre a cabeça de seus fiéis por faltas cometidas num espaço de tempo bastante limitado da duração da vida humana. Em sua obra “A alma imoral”, Bonder (1998) fala numa “psicologia evolucionista”, que nada mais parece ser que uma versão para a compreensão junguiana de que a psique exibe um processo natural de desenvolvimento, chamada por Jung de “Individuação”. A “imoralidade” da alma estaria em transgredir as tradições que ficaram ultrapassadas, em busca de uma ética que se adeque melhor aos tempos presentes:

“O ser humano é talvez a maior metáfora da própria evolução, cuja tarefa é transgredir algo estabelecido. Antes mesmo de conhecer a consciência e de se perceber nu, ou seja, um animal moral, o ser humano deparou com uma dimensão de si capaz de transgredir e provavelmente projetada para isso. Essa dimensão, como muito bem aponta o texto bíblico, se origina na mais pura natureza animal (a cobra) e escolhe a mulher como o meio mais propício para plantar a semente da transgressão e repassá-la ao homem para que, juntos, transgredissem. Na verdade, essa parceria no processo de transgredir se inicia no próprio Criador, que implanta uma espécie de primeira consciência através de uma proibição” (BONDER, 1998).

Para Bonder, é na tensão entre conservação e progresso que a vida se dá. É impossível viver apenas num dos pólos: se formos absolutamente conservadores, nos tornamos cruéis, sufocando a alteridade e impedindo a capacidade de criar o novo. Se tentarmos ser apenas progressistas, revolucionários, transgressores, somos tolos: jogamos fora desnecessariamente o que foi conquistado e aprendido em séculos ou milênios de evolução e arriscamos a nossa própria destruição (BONDER, 1998). É bastante comum que estes dois pólos da vida sejam exercidos alternadamente num mesmo indivíduo: quando jovens, somos criativos, rebeldes, inconformados com a tradição e a visão de mundo dos pais; a tendência é sermos revolucionários. Quando estabelecemos uma família, uma carreira, temos filhos e mais responsabilidades, evitamos pôr este estado de coisas em risco, desejamos conservar aquilo que conquistamos. É possível, inclusive, ser progressista e conservador ao mesmo tempo, afinal, em qualquer sociedade há elementos a serem preservados e outros a serem melhorados.

Protagonizando o discurso conservador contrário às pautas progressistas, vemos curiosamente defensores da mais irrestrita liberalidade econômica, contradição típica do pensamento protestante-capitalista: se na economia defende-se o mínimo de regulação estatal, elege-se o trabalho e a riqueza material como a medida do indivíduo numa sociedade (teoricamente independente de raça, sexo e origem social, a chamada “meritocracia”), no âmbito dos costumes tenta-se desesperadamente cercear a liberdade individual de forma anacrônica e incompatível com um mundo tão liberal. Tenho a forte impressão de que muitos protestantes de hoje repudiariam o Jesus liberal do Novo Testamento caso ele reaparecesse nos dias atuais em meio a uma multidão de pobres e excluídos, pedindo mais tolerância às escolhas individuais e menos ambição por riqueza e poder. Alguém duvida de que Jesus seria hoje chamado de comunista, “marxista cultural” ou coisa pior, caso sugerisse a um rico que vendesse tudo o que tivesse e distribuísse aos pobres?

Para o filósofo francês Gilles Deleuze (1997), a contradição entre o liberalismo de Cristo e o conservadorismo dos protestantes acontece porque a mensagem cristã de perdão dos pecados e salvação da alma trazida nos evangelhos (em Grego, “boa nova”) acabou sendo sobrepujada pelas más notícias trazidas pelo Apocalipse ou Revelação de João:

“João de Patmos nem sequer veste a máscara do evangelista, nem a de Cristo, mas inventa uma outra, fabrica uma máscara diferente que, conforme a nossa escolha, desmascara Cristo ou então superpõe-se à dele. João de Patmos trabalha no terror e na morte cósmicas, ao passo que o Evangelho e Cristo trabalham o amor humano, espiritual. Cristo inventava uma religião de amor (uma prática, uma maneira de viver, e não uma crença), o Apocalipse traz uma religião do Poder – uma crença, uma maneira terrível de julgar” (DELEUZE, 1997).

Os ensinamentos de amor e tolerância que Jesus trouxe parecem que ainda hoje não são plenamente compreendidos. No entanto, se hoje a humanidade tem condições de discutir a possibilidade do aborto como ato de piedade em relação às vidas futuras da mãe e da criança indesejada, se não precisamos mais repudiar e matar homossexuais para obedecer a Deus, se é possível entender que uma união afetiva possa terminar pacificamente sem que seja necessário permanecer unido ao outro através do sofrimento para cumprir um mandamento arcaico, devemos esse progresso ao revolucionário liberal Jesus, dois mil anos à frente do seu tempo. Infelizmente, para muitos a mensagem mais convincente ainda é a do Deus impiedoso do Antigo Testamento e do Apocalipse, que, para Jung, é:

“[…] uma espécie de bofetada contra todas as representações de humildade, tolerância e de amor cristão ao próximo e ao inimigo, e de um Pai amoroso que está no céu e de um Filho e Salvador que veio libertar os homens. Uma verdadeira orgia de ódio, cólera, vingança, furor cego e destruidor, insaciável de criações fantásticas e aterradoras, irrompe na superfície e inunda, com sangue e fogo, um mundo que ainda há pouco se procurava salvar e reconduzir ao status original de inocência e de comunhão com Deus” (JUNG, 2013j).

Paulo Nunes – Médico graduado na UFBA em 2005. Psicoterapeuta Junguiano pós-graduado no IJBA. Atendimentos em Salvador. Contato: (71) 98355-6564 (Telefone e Whatsapp). Instagram.com/jungexplica

REFERÊNCIAS:

BONDER, N. A alma imoral: traição e tradição através dos tempos. Rio de Janeiro, Rocco, 1998.

DELEUZE, G. Crítica e Clínica. São Paulo, Editora 34, 1997.

FOUCAULT, M. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis, Vozes, 1996.

JUNG, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 2013a.

JUNG, C, G. Resposta a Jó. Petrópolis, Vozes, 2013j.

JUNG, C. G. Tipos psicológicos. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2013t.

NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

WEBER, M. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo, Companhia das Letras, 2004.