Como curar um fanático

A leitura de uma obra literária pode nos levar a mergulhar em águas profundas de onde emergem nossas emoções e processos imaginativos que geram um melhor conhecimento da natureza humana. Essa ação nos ajuda a estruturar o pensamento lógico para, em lugar das certezas, construirmos ideias que possam ser alteradas à medida que evoluímos.

Fanáticos são pessoas que abraçam uma causa, ou uma ideia, de forma a acolher todos os indivíduos que comunguem com essas mesmas crenças. Formam tribos com uma visão apaixonada e, em lugar da flexibilidade, definem sua predileção cega em direção ao que foi concebido como uma verdade incontestável. Exaltados, multiplicam sua paixão pelo número de indivíduos que compõem sua tribo para esconjurar todo o mal que enxergam.

O escritor premiado Amós Oz faleceu em dezembro de 2018, aos 79 anos. Por ser um judeu israelense, participou do movimento “Paz Agora”. Nele, realizou palestras para conscientizar seu povo e os árabes palestinos de um combate entre o “certo” e o “certo” que ele denominou de “Guerra imobiliária”. Para Amós, o fanatismo é o combustível que alimenta essa luta, já que ambos os lados merecem ter o seu território. Ele deixou suas palestras publicadas em sua obra literária “Como curar um fanático”.

Amós não escreve como um cientista político, mas como um linguista que entende que há algo de comum na natureza humana. É por aí que estamos unidos, o que Jung chamou de inconsciente coletivo. Quanto mais evoluímos, mais deixamos de seguir as trilhas da vida de forma inconsciente e descobrimos as ilusões que nos empurram muitas vezes para viver à beira de um abismo. Toda história contada pelo homem já traz em si a arquitetura desse inconsciente.

Quando não estamos atentos ao que somos e como somos, embarcamos na experiência de odiar o que acreditamos ser o mal sem notar o quanto essa abominação a uma causa ou ideia nos leva irracionalmente a procurar tudo que represente o seu contrário para abraçar, de forma passional, tudo que simule ser esse avesso. Essa é a ilusão de vencer o mal.

Amós cita uma frase do poeta John Donne, “nenhum homem é uma ilha”, e aproveita a metáfora para dizer que somos como peninsulas, em parte conectados com o continente que é a família, a cultura, a tradição e outros laços etc, – e em parte se lança no mar em seu silêncio profundo para viver o que é ser um “in-divíduo”. Para ele, qualquer sistema de governo que transforme o homem em uma ilha é cruel.          Árabes e judeus, vítimas de preconceitos dos europeus, agem como dois irmãos vítimas de um mesmo pai opressor. A história mostra o quanto, nessas situações, cada um dos irmãos projeta no outro a opressão sofrida. Enquanto não puderem sair da fase “infantil” de consciência, vão reproduzir um para o outro a opressão que sofreram e, dessa forma, manter-se-ão numa relação beligerante por meio do fanatismo.

Para amadurecerem e tornarem-se penínsulas em vez de um arquipélago constituído de ilhas isoladas, não basta terem mais “informações” ou usar a racionalidade, precisam cessar a desumanização, combatendo o fanatismo. O fanático é aquela figura singular que vive sem saber nada de si mesmo, longe da empatia e da imaginação, ingredientes citados por Amós como necessários para resolver conflitos quando queremos ser humanos.

O fanático generaliza e unifica a causa em uma ideia ou crença para lutar com ódio e vontade de vingança. Não treina a possibilidade de colocar-se no lugar do outro; faltam-lhe imaginação e empatia. Como a literatura é antiunificadora ou generalista, ela não aponta os fins para justificar os meios como fazem os fanáticos. Por essas razões, Amós aponta a literatura como meio de curar um fanático.

A boa obra literária cria mais perguntas e deixa que os vazios sejam preenchidos pela singularidade de cada leitor. Já os livros que vêm, como os fanáticos, na forma de clichês, preenchendo os vazios como se soubessem da necessidade particular de cada um, a exemplo dos de autoajuda, são os mais lidos na atualidade e não servem para nos transformar.

Quando mergulhamos como a parte da península que avança para o mar, precisamos dessa relação de solidão com a literatura. Sabemos que a atualidade, época marcada por relações apressadas e superficiais por conta da tecnologia, faz essa questão ser um desafio. Assistir a um filme sobre uma obra poética subtrai as imagens que o leitor criaria se estivesse em uma demorada e solitária leitura.

É por meio dessas obras que compreendemos as matrizes ou os arquétipos que nos conduzem a viver as emoções de um processo imaginativo, empático, que naturalmente se instaura em nós como efeito terapêutico da leitura de uma boa obra literária, como os clássicos.

A psicodinâmica de um cliente nos faz entender o que se passa em seu universo interior, mas só com a linguagem das metáforas poderemos provocar-lhe a emoção do insight. A solução de Amós Oz para o homem sair dessa condição de fanático está em fazê-lo imergir nas suas profundezas por meio da literatura que carrega as metáforas poéticas, ou seja, utilizar-se da natureza da psique mostrada na forma como o inconsciente se expressa.

Carlos São Paulo – médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br  / www.ijba.com.br