Complexos – Funções Parciais – Pequenas Pessoas

Minha alma é uma orquestra oculta;

não sei que instrumentos tange e range,

cordas e harpas, tímbales e tambores, dentro de mim.

Só me conheço como sinfonia. (…) (Pessoa, 1996)

   No texto Junguiano a unidade da consciência surge como uma mera ilusão que não acontece, nem nunca aconteceu[ii]. A consciência é entendida como um “complexo assimilante”. Jung chama de “situação da experiência” um certo condicionamento psíquico que se interpõe ao imediatamente dado (JUNG, 1984) §195. Assimilação é uma tendência no sujeito que o leva a interpretar de determinada maneira. Isto faz com que tudo apareça na psique associado em algum complexo e todas as coisas só possam aparecer em relação. Portanto, “não há processos psíquicos isolados, como não existem processos vitais isolados. ” (JUNG, 1984) §197. Afasta-se assim do pensamento dominado pelo princípio da unidade e identidade ao ter como a referência fundamental a noção de complexo: “o complexo é uma unidade psíquica” (JUNG, 1999, p.33). Não haveria algo que pudesse ser unitário, isolado e fora da psique pois:

“Todo acontecimento afetivo torna-se um complexo. Se o acontecimento não estiver relacionado a um complexo já existente, possuindo assim um significado momentâneo, ele submerge (…) até o momento em que uma impressão semelhante a reproduza novamente.” (JUNG, 1999, p.58)

   “Eles (os complexos) são grupos autônomos de associações, com tendência de movimento próprio, de viverem sua vida independentemente de nossa intenção. ” (JUNG, 1983, p. 67).  Como gozam de certa autonomia em relação ao complexo do eu podem ser vistos como “funções parciais” (JUNG, 1978, p.57) ou como “pequenas pessoas” em cada vivente e serem personificados. Um exemplo de estado de ânimo personificado é Phobos ou o medo na cultura grega; nesta os mortais se relacionavam com Phobos como tendo vida própria e autônoma em relação ao “Eu”. Se um “estado de ânimo é como uma imagem dos conteúdos e tendências que se congregaram” (JUNG 1984, §167), cada complexo, como uma “personalidade fragmentaria” teria um elevado grau de autonomia, independência uns dos outros podendo revezarem-se no domínio da consciência, então “as intenções da vontade ficam dificultadas [pela constelação de complexos] quando não se tornam de todo impossível. ” (JUNG, 1984, §201). Complexos configuram uma rede de associações que colocam em relação uma variedade infinita de traços de um evento presente como sensações corporais, emocionais, aspectos isolados ou agrupados das contingências momentânea e mesmo sons e palavras com padrões de significado histórico.

   Complexos constelados possuem uma energia psíquica própria, influenciam as ações e provocam um determinado modo de reação. “Os complexos fazem parte da constituição psíquica (…)” (JUNG, 1984, §200); estes efeitos aconteceriam nas experiências das associações estudadas por Jung, mas como ele mesmo diz “acontece também em qualquer conversa entre duas pessoas. ” (JUNG, 1984, §200).

   Qualquer resposta desencadeada seria efeito da unidade do vivente onde são mobilizados o conjunto dos elementos configurados no complexo (emoções, ideias, pensamentos, sentimentos, frequência cardíaca, tônus muscular, resposta simpática e parassimpática, liberação de hormônios, temperatura corporal etc.) tudo é ativado em resposta ao que está constelando no complexo acionado. “(…) na realidade absoluta não há uma tal coisa como corpo e mente, mas corpo e mente ou alma são o mesmo, a mesma vida, (…)”  (JUNG, 1995,§52). Embora os aspectos determinados como corpo, mente ou alma possam ser vistos como efeitos de constelações complexas acionadas e, portanto, não haveria sentido em separá-las. Assim corpo e psique não seriam duas coisas, mas perspectivas diferentes descrevendo aspectos que aparecem num mesmo evento. O que parece determinado e se submete aos números, à equivalência, à medição necessária ao método empírico das ciências naturais seria chamado de corpo, biologia, natureza etc. O que interfere, atrapalha, perturba, produz falhas no que era esperado empiricamente é designado por Jung como fator psíquico. Estes fatores que interferem e conduzem o sujeito a ações e reações que a consciência não tem acesso foram chamados complexos inconscientes.

   Todos os complexos seguem processo de automatização e autonomização chamados de hábitos; assim “a forte tonalidade afetiva cria um caminho, o que reafirma (…) cada complexo possui uma tendência para a autonomia” (Jung, 1999, p.80). Os hábitos adquiridos no processo de socialização produziriam marcas, traços unificados que tenderiam a funcionar de forma autônoma e a conduzir os sujeitos em determinadas ações.

“Muitas vezes nos vemos forçados a determinadas ações por um afeto que, no início, sofre grandes inibições e depois de várias repetições a reação se dá prontamente a partir de um pequeno impulso, devido à diminuição da inibição.” (Jung, 1999, p.80)

   Um complexo pode ser ativado e atualizar-se em constelação que seria o “processo psíquico que consiste na aglutinação e na atualização de determinados conteúdos. ” (JUNG, 1984, §198).

“”está constelado” indica que o indivíduo adotou uma atitude preparatória e de expectativa, com base na qual reagirá de forma inteiramente definida. A constelação é um processo automático que ninguém pode deter por própria vontade.” (JUNG, 1984, §198).

   Apoiado em estudos de Janet e Prince, Jung fala da extrema dissociabilidade da consciência – “cada fragmento da personalidade tinha uma componente caracterológica própria e sua memória separada. Cada um destes fragmentos existe lado a lado, relativamente independentes uns dos outros (…)” (JUNG, 1984, §202). O complexo seria um fator psíquico que pode superar as intenções da consciência – “um complexo ativo nos coloca por algum tempo num estado de não-liberdade” (JUNG, 1984, §201); “(…) os complexos podem “ter-nos”. A existência dos complexos põe seriamente em dúvida o postulado ingênuo da unidade da consciência que é identificada com a “psique”, e o da supremacia da vontade. ” (JUNG, 1984, §201). Por isso James Hillman afirma que “(…) não somos nós quem imagina, mas nós que somos imaginados. ” (HILLMAN, 1983, p.29)

   Um complexo afetivo é uma imagem[iii] de determinada situação psíquica “dotada de poderosa coerência interior e tem sua totalidade própria e goza de um grau relativamente elevado de autonomia. ” (JUNG, 1984, §201). Assim “(…) uma imagem não é aquilo que se vê mas uma maneira como se vê. Uma imagem é dada pela perspectiva imaginativa e só pode ser percebida no ato de imaginar. ” (HILLMAN, 1983, p.28), então é através das imagens que algo, suposto como imediatamente dado, pode ser vivido; não apenas literalmente, mas “visto” metaforicamente.

   Os complexos se configurariam através das imagens como “(…) múltipla relação de significados, disposições, eventos históricos, detalhes qualitativos e possibilidades expressivas que se auto-delimitam. ” (HILLMAN, 1983, p.31).   Seria o afeto[iv] o elemento que pulsa e daria a tensão necessária para que as conexões feitas por associações ganhassem força e permanecessem. A imagem seria, ao mesmo tempo, fator organizador e resultado da interação totalidade do vivente com todos os traços aglutinados, quer seja em experiências empíricas vividas pelo sujeito ou associações consolidadas histórica e socialmente em formas de viver, em produtos culturais como educação formal, literatura, cinema, religião, ciência etc.

   Assim existiria sempre um padrão arquetípico (deus) em tudo que está sendo visto percebido e em tudo que está sendo feito, mesmo que a consciência não se dê conta haveria sempre algo conduzindo.

(…) Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,

(…) na estrada do sonho, ou na estrada da vida…

Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante,

Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.

(…) Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo

Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!

Quanto me emprestaram, ai de mim! Eu próprio sou!

(…) O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,

É agora uma coisa onde estou fechado

Que só posso conduzir se nele estiver fechado,

Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim. (…)

(PESSOOA,1977, p.371)

Referências

HILLMAN, James. Psicologia Arquetípica. São Paulo: Cultrix, 1983.

—. Re-vendo a psicologia. Petropólis: Editora Vozes Ltda, 2010.

JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. Vols. VIII-2. Petrópolis: Vozes, 1984.

—. Fundamentos de Psicologia Analítica. Vol. Vol. XVIII/1. Petrópolis: Vozes, 1983.

—. “Dream Analysis.” Bollingen Series XCIX. Ed. William McGuire. Princeton: Princeton University Press, 1995.

—. Psicogênese das doenças mentais. Vol. III. Petrópolis: Vozes, 1999.

PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. Vol. I. Campinas: Unicamp, 1996.

—. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar S A, 1977.

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[i] Professor nos cursos de pós graduação do IJEP- Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa  (www.ijep.com.br) e Professor convidado do IJB Instituto Junguiano da Bahia – Médico psiquiatra; psicoterapeuta – psicologia arquetípica; Mestre em Saúde Mental USP; Supervisor técnico de Saúde da Lapa Pinheiros – SMS – PMSP; Facilitador no grupo de exercício de metáforas – psicopatologia reimaginada; Ex-Professor no Inst. Sedes Sapientiae no curso: Perspectivas Psicopatológicas – Psicologia Arquetípica; – E-mail: apersal@uol.com.br;

[ii] “Tudo isso se explica pelo fato de a chamada unidade da consciência ser mera ilusão. É realmente um sonho de desejo. Gostamos de pensar que somos unificados; mas isso não acontece nem nunca aconteceu. Realmente não somos senhores dentro de nossa própria casa. E agradável pensar no poder de nossa vontade, em nossa energia e no que podemos fazer. Mas na hora H descobrimos que podemos fazê-lo até certo ponto, porque somos atrapalhados por esses pequenos demônios, os complexos. Eles são grupos autônomos de associações, com tendência de movimento próprio, de viverem sua vida independentemente de nossa intenção. ” (Jung, 1983, p. 67).

[iii] “(…) “Imagem” não se refere a uma imagem posterior, resultado de sensações e percepções; tampouco significa um construto metal que representa de forma simbólica certas ideias e sentimentos que expressa. (…) “as imagens representam coisa nenhuma” (…)” (HILLMAN, 1983, p.27); “(…) não significa que a imagem precisa ser vista. (…) não tem propriedades alucinatórias, as quais confundem o ato de perceber imagens com imaginá-las. Nem precisam ser ouvidas como numa linguagem poética. Essas noções de “visibilidade” tendem a literalizar imagens como eventos distintos apresentados pelos sentidos.” (HILLMAN, 1983, p.28).

[iv] Jung citando Bleuler diz: “A afetividade, portanto, mais do que uma reflexão é o elemento que pulsa em todas as nossas ações e omissões. (…). O estado afetivo é um fato dominante e as ideias lhes são sujeitas. – a lógica dos raciocínios é somente causa aparente.” (Jung, 1999, p. 31). Os afetos estariam pulsando em todas as ações do vivente uma vez que estariam relacionadas com a fixação do complexo.