“Você não escolhe a noite escura – ela lhe é dada. Sua tarefa é se aproximar dela e peneirá-la em busca do ouro” (Moore, 2009)
Em tempos de COVID-19 é muito comum recebermos de todos os lados e por meio das mídias sociais, dezenas e até centenas de dicas do que fazer em tempos de “isolamento social”, o que fazer para preencher o tempo livre: “ aproveitar esse momento para ler os livros que estão amontoados”; “assistir todas as séries, filmes da lista interminável do Netflix e a fins”; “ligar e ou mandar mensagens para quem não tenho tempo”, “brincar com meus filhos”; “conversar mais com familiares”; “arrumar os armários, organizar os livros, fazer, fazer e fazer; falar, falar e falar; ler, ler e ler; assistir, assistir e assistir.
São tantas atividades que precisaríamos, praticamente, nunca mais voltarmos a trabalhar e a se locomover pela cidade para darmos conta da lista interminável. É interessante observar como os pacientes se queixam de ter que fazer tanta coisa durante o confinamento. Para que tantas coisas? Qual ou quais as possíveis faltas que este excesso de atividades pode estar encobrindo? Estaríamos assustados com a possibilidade de nos confrontarmos conosco mesmos?
Vivemos em uma cultura extrovertida, voltada para fora, para o externo. Por isso precisamos de tanto: tantos livros, tantos filmes, tantas séries, tantas conversas, tantas festas e tantos encontros. Quantidade sem necessariamente qualidade. Nos tornamos glutões, que engolem e comem muita coisa, às vezes indiscriminadamente, sem valor nutricional. E pior, sem saborear, sem desfrutar das diferentes nuances dos sabores e dos aromas. Sem desenvolver o paladar. Apenas devoradores. Sem aprofundamento.
Sem ao certo nos darmos conta, tornamo-nos consumidores vorazes de cursos, livros, aulas, terapias, etc, como se não soubéssemos nada, e, tudo estivesse fora, nos outros, nos mestres, nos gurus. Ficamos muitas vezes acomodados no lugar de discípulos/filhos/alunos por muito tempo . Como se as respostas estivessem fora de nós mesmos, do nosso inconsciente, do nosso mundo interno.
Muito poucos, neste momento tem a coragem de propor o SILÊNCIO: ficar consigo mesmos, ouvir uma outra voz, a voz que vem de dentro e que nos diz o que realmente é importante e essencial. Jung ao compartilhar conosco sua obra, mas principalmente o seu percurso, o seu processo de construção interno e externo, nos aponta caminhos para vivermos este momento conturbado.
Também ele vivia momentos de dificuldade e atordoamento. As suas divergências de ideias, culminaram no rompimento com Freud, a quem ele admirava muito e reconhecia seu o valor do trabalho pioneiro e fundamental. Isso gerou um significativo abalo no seu mundo interno e externo. Foram dias de muito sofrimento, reflexão e confrontos, seguido de muitas perdas:
“ Depois da ruptura com ele (Freud), todos os meus amigos e conhecidos se afastaram de mim. Meu livro (na época, Metamorfoses e Símbolos da Libido) não foi considerado uma obra séria. Passei por místico e desse modo encerraram o assunto” (Jung,2015, p. 173).
Ao mesmo tempo dias sombrios rondavam a Europa, às vésperas do início da Primeira Guerra Mundial. Jung era acometido por visões e sonhos que não entendia. Foram dias e dias de silêncios, interrupções, retornos, avanços, retrocessos e paradas. Momentos de entrega, sem mesmo “entender” nada do que acontecia e dos significados de todas aquelas imagens e diálogos. Em alguns trechos confessa o medo de estar enlouquecendo. Mesmo assim decide fazer diante de tudo aquilo um caminho para dentro. Resolveu fazer silêncio externamente e ouvir a voz de dentro:
“[…] por volta dos meus quarenta anos de vida, havia alcançado tudo o que eu desejara. Havia conseguido fama, poder, riqueza, saber e toda a felicidade humana. Cessou minha ambição de aumentar esses bens, a ambição retrocedeu em mim, e o pavor se apoderou de mim. A visão do dilúvio tomou conta de mim, e eu senti o espírito da profundeza, mas não o entendia”( Jung, 2013, p. 116).
Suportou ficar na pergunta, na dúvida, navegar no desconhecido, na não resposta imediata e racional, na não simplificação. Jung se permitiu à vulnerabilidade, se deu tempo e fez silêncio:
“Pus-me, então, à escuta do que o acaso trazia” (Jung, 2015, p. 177).
Em um outro trecho da mesma obra escreve:
“Foi no ano de 1913 que decidi tentar o passo decisivo – no dia 12 de dezembro. Sentado em meu escritório, considerei mais uma vez os temores que sentia, depois me abandonei à queda. O solo pareceu ceder aos meus pés e fui como que precipitando numa profundidade obscura. Não pude evitar um sentimento de pânico” (Jung,2015, p.185).
E, assim se entrega ao seu movimento interno, e passa a registrar tudo que ocorre no seu mundo de dentro, as imagens, os diálogos, as visões. Concede importância e voz a tudo que ocorre no seu interior, sem nem mesmo entender, isso fica para depois.
No início deste processo reencontra a sua alma, “após muitos anos de peregrinação voltei novamente a ti. […] A vida reconduziu-me a ti. Vamos agradecer à vida o fato de eu ter vivido, todas as horas felizes e tristes, toda alegria e todo sofrimento. Minha alma, contigo deve continuar minha viagem. Contigo quero caminhar e subir para minha solidão” (Jung, 2013, p. 116-117).
Não me parece improvável, que o fenômeno pandêmico gerado pelo COVID-19 também nos arrasta para um retorno ao centro. Um encontro ou um reencontro com a nossa alma. As distrações estão fechadas. Os entretenimentos cada mais reduzidos e escassos. Tudo isso pode ser uma grande oportunidade para que possamos realmente nos darmos conta do que é mesmo importante e essencial na vida. De olharmos para dentro no fundo dos olhos da nossa alma e lá encontrarmos a nós mesmo mesmos e aos outros. Mas como lembra Jung, o caminho é de solidão. E aí está, um grande desafio. Ficar em estado de solidão sem sucumbir ao adoecimento. Suportar a “noite escura da alma” e ansiar pelo alvorecer:
“Durante a noite escura, não há escolha senão abrir mão do controle, ceder ao desconhecido, e fazer uma pausa para atentar a quaisquer sinais de sabedoria que possam surgir. É um momento de recolhimento forçado e talvez relutante. A noite escura é mais que uma experiencia de aprendizado – é uma iniciação profunda em um reino para o qual nada em nossa cultura, tão preocupada com interesses externos e sucesso material, prepara o indivíduo” (Moore, 2009, p. 18).
Continua:
“Uma verdadeira noite escura da alma não é um desafio superficial, mas uma situação que afasta você da alegria da vida cotidiana. Um acontecimento externo ou uma disposição interior que o atinge no cerne de sua existência. Não é apenas um sentimento, mas uma ruptura em seu ser, e pode levar um bom tempo até que você consiga superar e chegar ao outro lado.” (Moore, 2009, p. 14)
Penso que não há dúvidas que estamos em uma noite escura da alma, todos nós, toda a humanidade. Tudo que estamos vivendo rompe e põe de joelhos todas as estruturas de um modo de viver, de se relacionar, de consumir, enfim, de se estar sobre essa terra.
Mas, todo esse processo requer um tempo. E não se trata do tempo do nosso desejo, mas do tempo das coisas, da vida. Que mais do que nunca estamos constatando que não nos obedece. Hoje somos obrigados, pela cultura, a evoluir em horas, em minicursos, workshops de fim de semana e/ou na leitura do mais novo best-seller que simplifica a complexidade da vida e nos faz sentir verdadeiros idiotas, out, dos processos avançados de felicidades instantâneas. Os livros vão congestionando nossas mesas de cabeceiras, escrivaninhas e estantes, aumentando o mal-estar, intensificando uma certa impotência e a sensação de estar o tempo todo atrasado. No entanto tudo isso acaba apenas por nos afastar de nós mesmos.
Essa pandemia nos arrasta e nos obriga a uma introversão, mas só será proveitosa se nosso ego tornar-se humilde, aceitar conscientemente o convite do SELF e usufruir deste tempo retirando-se do centro e do controle, usufruindo do silêncio, ouvindo. A experiência por si só não ensina nada e não transforma as pessoas e as coisas. Se assim o fosse teríamos tido apenas a 1º Guerra Mundial e os conflitos por poder e dinheiro seriam inexistentes. Como nos alerta Moore, 2009:
“Você presta um desserviço a si mesmo quando trata seus sentimentos de desespero e vazio como desvios da vida normal e saudável que idealiza. As noites escuras, assim como a iluminação e as conquistas, deixam sua marca e fazem de você uma pessoa com mais clareza e compaixão (Moore, 2009, p. 17).
Desta maneira as experiências podem produzir frutos e apontar para um novo alvorecer, se, e somente se, o ego voluntariamente, conscientemente, fizer as renúncias necessárias, desinflar-se e suportar o silêncio, o tempo, os vazios e vulnerabilidade e assim, poder ir além e no profundo do Si-mesmo, encontrar/construir novas formas de viver, de relacionar e de ser.
Adriano Luiz Pardo, Psicólogo, Analista em Formação pelo IJEP.
Contato: 67 99980-1079 – adrianopardo@uol.com.br
Referências:
JUNG, C.G. O Livro Vermelho: edição sem ilustrações. 3º edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
JUNG, C.G. Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
MOORE, Thomas. Noites Escuras da Alma: um guia para iluminar seu caminho em meio às provocações da vida. Campinas, SP: Vênus, 2009.