Dois Irmãos

Quando deslizamos suavemente por uma boa obra literária, como “Dois irmãos”, os problemas humanos apresentados ficam mais claros ao ativar a nossa imaginação de leitor. Essa é a razão que nos causa estranheza quando assistimos a sua adaptação para a televisão e comparamos com as nossas imagens pessoais. No caso, essa leitura nos leva a compreender como um amor patológico da mãe pode despreparar um filho para a vida adulta e terminar em tragédia.

O autor do romance “Dois irmãos”, Milton Hatoum, nasceu em Manaus e ganhou com esse livro o prêmio Jabuti de 2001. A obra foi adaptada para teatro, Graphic Novel e TV. Ela conta a história de uma família de ascendência libanesa que viveu em Manaus. Com início na década de 1920, passa pela Segunda Guerra e envolve o período após o golpe militar no Brasil.

Halim conquista Zana, a filha de um comerciante viúvo, e casa-se com ela. Ele deseja ficar sempre a sós com sua esposa, sem a intromissão de filhos, mas Zana manifesta o desejo de ser mãe e é atendida. Na primeira gravidez, nascem os gêmeos Yaqub e Omar, irmãos com a mesma genética, e, numa segunda gestação, nasce a filha Rânia. Omar, o segundo a nascer, tem problemas respiratórios e ameaça não sobreviver, situação que levou a mãe a dedicar-se mais a esse filho do que ao outro. Ela chama-o de “meu caçula”.

Zana ultrapassou a justa medida em sua dedicação amorosa a Omar e a consequência foi levar os gêmeos a seguirem o caminho regido pelo arquétipo de Abel e Caim, ou seja, desenvolverem personalidades conflitantes desde pequenos. Os arquétipos são compreendidos, na psicologia de C. G. Jung, como tramas contidas na psique humana que levam os indivíduos, de forma inconsciente, a seguirem scripts já conhecidos pelas diversas narrativas feitas pelo homem. A literatura arcaica é utilizada pelos analistas junguianos para conseguirem entender as estradas por onde peregrina a humanidade e, assim, poder mostrar ao seu paciente aonde ele vai chegar caso não mude o rumo.

A leitura do romance de Hatoum nos alerta para o perigo de uma mãe, em sua inconsciência, aproximar-se demais de um dos gêmeos em detrimento do outro. Essa é a razão que levará os irmãos a não conseguirem se diferenciar entre si e enxergarem no outro a sua própria sombra. Sombra é outro conceito junguiano que considera uma parte da própria personalidade total que lhe é inconsciente, por isso, esta é projetada no outro como um gêmeo vilão.

Zana venerava o pai e, quando este morreu, seu marido foi a figura masculina que preencheu esse espaço afetivo. No entanto, ao cuidar do caçula, essa energia disponível para outra figura masculina filial fez dele o amante incestuoso. Foi dessa forma que Omar aprendeu a desprezar tudo que não lhe desse prazer intenso, tornando-se um inútil mergulhado no mundo da infância, sem capacidade para a vida adulta cheia de responsabilidades.

Quando os gêmeos tinham 13 anos, Omar viu o irmão beijando a namorada da mesma idade e, em um ímpeto de ciúmes, agrediu Yaqub, marcando para sempre o seu rosto. Com esse acontecimento, Halim teve a ideia de separar os filhos dessa mãe com a sábia intenção de restaurar a fraternidade entre eles. No entanto, a força dos afetos da mãe foi maior. Dominada por suas sensações e sentimentos, junto com toda a irracionalidade, agarrou-se a Omar e não o deixou partir.

A atitude do pai estava correta, os gêmeos precisavam ser capazes de obter prazer um com o outro, preencher ansiedades e desejos resultantes da proximidade da mãe. Esta, por sua vez, precisava conhecer a particularidade de cada um, para notar, além das suas semelhanças, as diferenças e possibilitar a construção da identidade. A psique é individual e a mãe, em sua inconsciência, fez com que nem Yaqub nem Omar aprendessem a lidar com a ausência um do outro devido ao fato de ela representar os dois em um só, o Omar.

Rânia, com seus desejos incestuosos pelos irmãos, embora fosse bela e inteligente, nunca casou e viveu de forma inconsciente o seu amor proibido. Yaqub tornou-se um engenheiro bem-sucedido, enquanto Omar se perdeu na vida e foi perseguido pelo irmão de forma implacável.

A empregada Domingas, uma índia, tomou conta de Yaqub como uma mãe, enquanto Zana se entregava totalmente ao filho Omar. A narrativa nos surpreende quando descobrimos no curso da leitura que quem nos conta a história é Nael, o filho de Domingas com um dos gêmeos. Domingas amava Yaqub e Nael poderia ser filho desse vínculo incestuoso, mas Omar a estuprou e também teria a possibilidade de ser o pai. O leitor é envolvido na trama e acompanha com o sabor da curiosidade o desejo do narrador de ser filho de Yaqub.

A família de Zana envolveu seus membros na temática do “incesto” e a trama amorosa foi toda a energia que desuniu para sempre os irmãos. Estamos em uma sociedade em que as distâncias afetivas, por seus cônjuges ou figuras parentais, levam mãe ou pai, de forma inconsciente, a amar excessivamente o filho “escolhido”, tornando-o inútil como indivíduo. Há que se distinguir entre amar os filhos de forma regressiva ou, em sua outra maneira, deixá-los serem capazes de estruturarem sua identidade como indivíduo.

Tememos seguir essas trilhas erradas dos caminhos que percorremos durante a vida. No entanto, a literatura a serviço da saúde mental nos leva a conhecer essas trajetórias e perceber qual delas estamos percorrendo em dado momento, para que, com ajuda e esforço, possamos enxergar nosso caminho de casa.

Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br  / www.ijba.com.br