Entre o Masculino e o Feminino: a androginia como imagem arquetípica

Por Márcio de Abreu

Antes que me acusem de reafirmar o binarismo de gênero, iniciarei este texto fazendo três ressalvas. Em primeiro lugar, uma discussão séria sobre os fundamentos da distinção científica entre machos e fêmeas deve considerar as implicações ontogenéticas dos aspectos cromossômicos, gonadais e fenotípicos que sustentam essa diferenciação. A distinção dos seres humanos entre pessoas do sexo masculino e feminino não é apenas uma convenção social. Apesar dessa diferenciação não ser sempre rígida ou absoluta, os fatores genéticos, hormonais e físicos que a sustentam influenciam diretamente o desenvolvimento humano.

Em segundo lugar, os desdobramentos culturais dessa distinção refletem uma organização simbólica das sociedades humanas que se desenvolveu em um contexto de relativa estabilidade e previsibilidade desses aspectos, principalmente o fenotípico — embora este esteja intrinsecamente relacionado aos dois primeiros (o cromossômico e o gonadal). Em outras palavras, a binaridade sexual, no seu sentido mais amplo, não é um conceito exclusivamente científico, visto que a percepção de que os seres humanos costumam nascer como machos ou fêmeas, e que isso implica em certas convenções sociais, é algo que perpassa todas as culturas humanas.

Por fim, reconhecer essa estabilidade biológica e suas repercussões sociais não significa invisibilizar aqueles cuja constituição fisiológica e/ou psíquica não se ajusta perfeitamente a tais parâmetros. Isso se aplica tanto à biologia — como no caso das pessoas intersexo — quanto às construções culturais sobre gênero, onde diferentes expressões de transgeneridade podem ser historicamente observadas em diferentes sociedades, não apenas nas ocidentais.

Isto posto, atentarei ao aspecto da cultura humana que serve de subsídio interpretativo para a psicologia analítica: os mitos. Comecemos por reconhecer que a presença de divindades que representam a fusão de aspectos masculinos e femininos é algo presente em praticamente todas as grandes tradições mitológicas — qualquer bom junguiano deveria ser capaz de citar ao menos um mito que comprove esta afirmação. Trago alguns exemplos: Ardhanarishvara (mitologia hindu): simboliza a fusão do masculino e do feminino em um único ser, representando a complementaridade e a interdependência dos gêneros, além da unidade primordial da existência; Ometéotl (mitologia asteca): divindade criadora do universo e a combinação das essências masculina (Ometecuhtli) e feminina (Omecihuatl), representando a dualidade presente em todas as coisas e a união de opostos complementares; Oxumarê (mitologia iorubá): orixá associado à renovação e ao ciclo da vida, é descrito em algumas tradições como alternando entre aspectos masculinos e femininos em ciclos de tempo, simbolizando a dualidade e a transformação.

As divindades acima — dentre tantas outras que poderiam ser citadas — possuem em comum não apenas a fusão do masculino e feminino em um único ser, mas também a união e a interdependência desses opostos como princípio arquetípico fundamental para a estabilidade dinâmica da própria existência (Oxumarê, por exemplo, costuma ser representado como uma grande serpente que sustenta o equilíbrio do mundo, garantindo sua continuidade).

Essa dinâmica também está presente no nível individual, na medida em que a integração de animus (princípio masculino) e anima (princípio feminino) é fundamental para a realização do self — arquétipo central da psique e princípio organizador da personalidade. Por essa perspectiva, o self pode ser visto como um reflexo do cosmos dentro da psique; uma manifestação microcósmica da totalidade do universo, razão pela qual Jung frequentemente o comparava a imagens de totalidade encontradas em diversas tradições religiosas e filosóficas, como o Atman no hinduísmo, o conceito alquímico da pedra filosofal ou a ideia de imago Dei (imagem de Deus) no cristianismo.

Sugeri em texto anterior que substituíssemos os termos masculino e feminino pelos conceito de animus e anima, como forma de evitar que tais discussões assumissem conotações ideologicamente carregadas. Contudo, é também necessário reconhecermos que a distinção entre masculino e feminino é uma constante antropológica, presente em praticamente todas as culturas conhecidas — algo relacionado ao fato de que a maioria dos seres humanos nasce com características sexuais que podem ser classificadas como masculinas ou femininas.

Isso também significa que, enquanto a ontologia que estrutura nossas concepções de gênero for baseada na polaridade masculino-feminino, qualquer identidade que busque se afastar dessas categorias ainda precisará referenciar-se nelas, mesmo que seja para negá-las ou subvertê-las. Estamos, assim, diante de um paradoxo: a tentativa de escapar do binário de gênero acaba reafirmando sua existência, pois a própria ideia de “não conformidade” só faz sentido dentro de uma estrutura que define previamente aquilo do qual se está se desviando.

A mitologia universal — entendida aqui como expressão de um inconsciente coletivo — aponta um caminho alternativo. O tema da integração dos opostos, quando analisado sob a luz da psicologia analítica, indica que a fusão do masculino e feminino enquanto princípio arquetípico não implica a anulação de suas diferenças, mas sim a capacidade de coexistir com essas tensões de forma criativa.

O desafio, portanto, não está em negar ou eliminar essa distinção, mas em permitir que ambas as forças dialoguem na construção de identidades que reconheçam sua interdependência, abrindo espaço para formas mais integradas e plenas de existência humana.

Referências

Brandt, K. A. (2023). The multiple meanings of sex. MDedge. https://www.mdedge.com/obgyn/article/266405/transgender-health/multiple-meanings-sex 

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Jung, C. G. (2016). OC 9/1 Os arquétipos e o inconsciente coletivo [ePub]. Petrópolis: Vozes.

Ridgeway, C. L.; Correl, S. J. (2004). Unpacking the gender system: a theoretical perspective on gender beliefs and social relations. Gender & Society, 18(4), 510-531.

Scott, J. W. (1986). Gender: A Useful Category of Historical Analysis.The American Historical Review, 91(5), 1053-1075.

Márcio de Abreu – Analista junguiano formado pelo Instituto Junguiano da Bahia (IJBA). Doutor em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre em Teoria Crítica e Estudos Culturais pela University of Nottingham e em Cultura e Sociedade pela UFBA. Bacharel em História com Habilitação em Patrimônio Cultural pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL).