Explicamos por que fazemos o que fazemos criando fábulas induzidas, muitas vezes, por conteúdos esquecidos que foram evocados durante alguma experiência do presente. Elaboramos essas histórias com grande confiança e sem a consciência de tê-las inventado quando tentamos explicar certas decisões que tomamos. O escritor alemão Wilhelm Jensen escreveu “Gradiva: uma fantasia pompeiana”, uma bela história para se entender esse fenômeno. Nela podemos também entender o que o analista pode fazer para conseguir tornar o paciente consciente dos devaneios responsáveis pelos seus atos.
Jung foi quem sugeriu a Freud ler essa obra. O mestre, com atenção ao seu dileto discípulo, toma a literatura como uma espécie de testemunho do inconsciente e escreve no ano seguinte, em 1907, a sua obra: “Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen”. Essa foi a primeira obra literária tomada por Freud para exemplificar o modo como o inconsciente atua em nossas vidas.
Sabemos hoje que ler literatura é conhecer o homem com todas as suas possibilidades de ser, agir e pensar. O filósofo Gaston Bachelard diz em uma das suas falas: “Os psicólogos não sabem tudo. Os poetas trazem outras luzes a respeito do homem”. Portanto, o contato com a literatura na formação do psicoterapeuta tem uma grande importância prática ao enriquecer seu olhar sobre a psique e evitar que o conhecimento seja contaminado por uma presença impessoal dos manuais da psicopatologia. Jensen conta a história de Norbert Hanold, um jovem arqueólogo que nunca amou ninguém e dedicou sua vida integralmente à busca dos vestígios do passado clássico. Em uma de suas viagens, encontrou em um museu romano uma peça em baixo-relevo que o impressionou de forma especial. Ele conseguiu uma cópia e a levou consigo.
A escultura traz a imagem de uma jovem, de caminhar sutil, em que se vê o pé esquerdo à frente e o direito disposto a segui-lo. Essa imagem pareceu a ele uma jovem pompeiana, modelada pelas cinzas do Vesúvio há 1600 anos, em que o artista esboçou um modelo em argila. O fascínio por essa imagem, e em especial pelos pés, foi tão intenso que ele passou a lhe dar vida e a chamou de Gradiva – aquela que avança. Suas hipóteses se transformaram em convicção e resolveu ir até Pompeia para encontrá-la. Em Pompeia, ao sol do meio-dia, ele vê passar uma mulher com aquele mesmo caminhar e pensa: “como pode ela estar aqui se morreu há tanto tempo?”. Quando somos tomados por um estado de paixão, entramos em um estado temporário de demência e somos levados a comportamentos obsessivos que nos obrigam a só pensar naquela pessoa. A jovem que passava sempre naquele horário, o horário dos mortos, chamava-se Zoe e estava ali passeando porque seu pai era um arqueólogo trabalhando nas ruínas de Pompeia. Ela percebe o quanto Norbert a observa, todos os dias, e pressente a confusão em que ele se encontra. Ao notar que ele não se lembrava dela, sua “namoradinha” na infância, resolve tentar entender aquela situação estranha embarcando na viagem dele.
À medida que ele vai tendo certeza de suas fantasias, aos poucos, Zoe vai lhe oferecendo elementos que vão produzindo rupturas na continuidade entre a situação do passado e a atual estabelecidas pelas fantasias de Hanold. Chega então o momento favorável para ela levá-lo a uma reflexão, no lugar das confabulações, retirando-o do estado de delírio. Quando nossa vida atual se encontra afetada, pode ser uma tentativa de a psique libertar o amor que não conseguiu ter espaço para se expressar. Em nossa condição humana, ficar impedido de caminhar faz surgirem as fantasias.
As confabulações, que se opõem às reflexões, tornam-se necessárias para dar conta de emoções desconhecidas largadas ao longo da estrada da vida. Enquanto seguimos caminhos que suprimem nossas necessidades básicas, como a de amar, evocamos imagens formadas com o encontro entre a consciência e o inconsciente. São essas imagens que chamamos de símbolos.
O homem não conseguirá entender o sentido de um símbolo até que o analista ou alguém possa ajudá-lo a casar o teor da consciência com o conteúdo relacionado do inconsciente. No modelo junguiano, compreendemos que a autorregulação da psique se faz por meio da relação da consciência com o inconsciente que se manifesta nos sonhos, naquilo que nos afeta, em nossos devaneios e nos acontecimentos que consideramos sem relação de causa e efeito, mas com coincidências significativas.
Gradiva fez o papel de um símbolo que levou Norbert a sair de um caminho unilateral que substituía o amor a uma mulher de verdade por uma mulher de argila, até viver a angústia e o delírio que o levaram a compensar a psique e seguir o caminho que chamamos, junguianamente, de “individuação”.
No jogo entre nossas confabulações e reflexões, precisamos nos desvencilhar das armadilhas das certezas absolutas. Só podemos compreender o outro ser humano, como fez Zoe, quando abrimos mãos de nossas certezas.
Vimos que a fantasia de Hanold não se recobre totalmente com a experiência da infância com Zoe. O que ultrapassou deu origem a um símbolo representado pelo caminhar de uma mulher que já morrera há muito tempo. A morte de sua capacidade de amar fez ressurgir, das cinzas de Pompeia, o amor para ter vida com uma mulher de verdade.
O trabalho de Zoe, de Gradiva ou do psicoterapeuta é entrar na fantasia do paciente, como fez Zoe, para nessa posição oferecer elementos que produzam rupturas em suas certezas até que o objeto de suas fantasias se desnude e as reflexões possam vencer as confabulações.
Carlos São Paulo – médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br / www.ijba.com.br