Assim começa o prefácio do romance da escritora italiana Susanna Tamaro, Vá onde seu coração mandar. A trama vem em forma de uma carta que uma avó escreve a sua neta, agora distante. Através de um relato tocante, a velha senhora conta sua própria história, a história de sua filha já morta, a mãe da garota, bem como a da sua neta. Nas linhas ela tenta rever as feridas familiares, que são muitas, as histórias que não foram vividas e através de um olhar de compaixão, perdoar a si própria e orientar sua neta, de que é preciso uma grande dose de amorosidade para aceitarmos nossas sombras que nos acompanham.
A velhice da protagonista já sente a presença da morte e sua alma clama por rever e resignificar suas feridas, muitas delas embrulhadas com as da neta.
Este livro tem dois grandes chamados: o da necessidade que temos de integrar nossas sombras, muitas vezes projetadas no outro. E a necessidade de fazer as pazes com nosso passado. Isto é percebido na fala que esta senhora tem de orientar esta neta dos próprios erros que ela irá cometer pela sua imaturidade. Como se de alguma forma, agora na idade madura, pudesse através desse monólogo com sua neta, conversar também com a jovem imatura que outrora fora. Mas essa compaixão por seus erros quando jovem, refletidos na amorosidade com a imaturidade da sua neta, só é digno daquele que teve a coragem de integrar e amar suas partes mais quebradas. Para estes existe a compaixão também com a sombra do outro.
Em um dos trechos diz: “ Ás vezes me pergunto porque as verdades elementares são tão difíceis de entender. Se eu tivesse compreendido, então, que a primeira qualidade do amor é a força, provavelmente os fatos se teriam dado de forma diferente. Para ser forte, contudo, a pessoa precisa antes de mais nada amar a si mesma, para amar a si mesma, precisa conhecer-se em profundidade, saber tudo de si, até as coisas mais ocultas, as mais difíceis de se aceitarem. Mas como levar adiante um processo desses enquanto a vida nos atropela com o seu alarido?… Dou a impressão de estar perdida, e talvez não seja só impressão: perdi-me de verdade. Mas o que você tanto busca, o centro, exige justamente este caminho.”
E assim vamos nos encontrando na fala desta senhora. Olhando os detalhes de sua vida, encontramos também nossa própria vida. A doçura e a firmeza da sua fala permite que comecemos também a dialogar com nossas próprias fraquezas. De uma forma delicada vamos fazendo contato com o ogro malcheiroso e enorme que habita na nossa sombra. Aquele que muitas vezes aparece em nossos sonhos e deixa nosso ego desconsertado. Aquele que muitas vezes negamos e refletimos no outro, mas que quando podemos achar dentro da nossa alma um pouco de ternura por ele, nos liberta de algemas pesadas.
Através da sua fala, esta senhora orienta a nós leitores como precisamos iniciar nossa jornada de individuação. E dentro da linguagem junguiana, o primeiro passo é o confronto com a sombra. Não existe caminho ao nosso Si mesmo se não passamos pelos nossos conteúdos sombrios.
Seu relato amoroso, pausado, tece com fios de compaixão o tecido que acolhe o nosso eu não aceito.
“ Se eu estiver em algum lugar, se ainda tiver a chance de vê-la, só ficarei triste, como sempre fico, ao ver uma vida jogada fora, uma vida em que o caminho do amor não conseguiu cumprir-se. Cuide-se. – diz a sua neta.
E prossegue: “ Toda vez que crescendo, tiver vontade de transformar as coisas erradas em certas, lembre-se que a primeira revolução a ser feita é aquela dentro de nós mesmos, a primeira e a mais importante. Lutar por uma idéia sem ter a idéia de sim mesma é uma das coisas mais perigosas que alguém pode fazer.”
Vá onde seu coração mandar é um livro curto, mas de uma profundidade que toca os abismos das nossas questões. Permite uma viagem interior em busca do nosso Self que clama em viver a potencia que somos.
Andréa Oliveira
Médica, Analista Junguiana
Coordenadora do curso de Psicotraumatologia Junguiana no IJBA